‘Gota d’água’: a Medeia de Chico Buarque em nova edição

Medeia de Eurípedes é uma das primeiras manifestações artísticas

Eu tenho uma beagle chamada Medeia.

Sei que esse é um jeito estranho de começar uma resenha sobre a reedição de uma peça de Chico Buarque, mas ninguém disse que a vida era fácil.

Medeia, a beagle, chegou pra mim antes da Medeia de Eurípedes. Desta, eu só sabia que era uma tragédia grega na qual uma mulher enlouquece de ciúmes e mata os dois filhos para se vingar do marido. Aquela, vi pela primeira vez com menos de uma semana de vida, uma bolinha minúscula de pelos brancos e pretos, os olhinhos fechados, o rabinho menor do que o meu dedo mindinho. Já era minha antes de ter esse nome. Eu já era dela quando pensei como seria irônico dar um nome tão forte a uma criaturinha tão inofensiva.

Da peça de Chico, sabia que era uma adaptação de Medeia ambientada nos morros do Rio de Janeiro. Mas na real, não sabia nada além do trivial sobre nenhum dos dois textos, até ver uma montagem de Medeia uns quatro anos atrás no Galpão do Folias, grupo independente de teatro sediado em Santa Cecília, centro de São Paulo. Sob impacto da peça, li Eurípedes e comecei uma busca intermitente por um exemplar de Gota d’água, então esgotado há vários anos. Cedi inclusive ao impulso de buscar um PDF nessa terra de ninguém que é a internet, mas nada. Até dar de cara este ano com uma edição novinha em folha da Civilização Brasileira nas prateleiras da livraria Leonardo da Vinci, no Rio de Janeiro.

Medeia de Eurípedes é uma das primeiras manifestações artísticas do mundo em que uma mulher se revolta contra os sofrimentos impostos a si justamente por ser uma mulher. A protagonista é uma estrangeira por quem Jasão se apaixona em uma de suas aventuras épicas, e ela concorda em abandonar seu povo para viver com ele em Corinto. Mas Jasão recebe a proposta de se casar com uma princesa grega, o que lhe seria vantajoso política e financeiramente. Então despreza Medeia, sugere que ela permaneça sendo sustentada como sua amante, mas longe de si. Ela se insurge contra esse plano, trama a morte da noiva de Jasão e finda matando os próprios filhos para vingar-se.

A peça é hoje considerada proto-feminista, por colocar em discussão os sofrimentos causados a uma mulher especificamente por ser uma mulher. Há outras personagens femininas fortes no teatro grego clássico – a minha preferida ainda é Antígona – mas Medeia de fato traz à cena questões indiscutivelmente de gênero, como o ser tratada como propriedade do marido (e assim, estar à mercê de ser jogada fora como um objeto) e a ascendência sobre os filhos como o único espaço em que ainda exerce algum poder. Antígona poderia ser um rapaz e a peça pouco mudaria; se Medeia fosse um homem, simplesmente não haveria peça.

Gota d’água foi escrita em 1975 em parceria com Paulo Pontes, no meio da ditadura militar brasileira, como uma crítica ao capitalismo e a prática de cooptação daqueles mais capazes entre as classes inferiores. Sem essas cabeças pensantes, atraídos por diversos meios à lógica da acumulação do capital, o povo estaria cada vez mais fadado à indigência política, invisível até mesmo na potência de suas manifestações culturais: “Ficou reduzido às estatísticas e às manchetes dos jornais de crime. Povo, só como exótico, pitoresco ou marginal”, dizem os autores na introdução à obra.

Neste texto, eles não mencionam uma única vez a condição da mulher, numa atitude então típica na esquerda de escamotear as questões das minorias em prol do que seria o “bem maior”. E apesar disso, Gota d’água grita em cada palavra contra a desigualdade de gênero.

Medeia é transformada em Joana, uma mulher de 44 anos que passara os últimos tantos sustentando seu companheiro 15 anos mais jovem, o sambista Jasão, que cai nas graças de Creonte, o dono do loteamento, ao escrever o sambinha Gota d’água. A filha de Creonte cresce o olho pra cima de Jasão, que então vê a oportunidade de ficar rico por meio de um casamento arranjado. Ao mesmo tempo, a comunidade começa a se preocupar contra os recorrentes aumentos nas prestações devidas a Creonte pelo financiamento de seus apartamentos.

Joana se revolta contra o abandono e passa reclamar aos quatro ventos, incomodando Creonte e sua filha. Jasão é então pressionado a fazer com que a ex-mulher deixe o bairro com seus dois filhos. A questão fundiária se confunde com a situação particular de Jasão e Joana, se expressando através dela na forma de uma injustiça ainda mais aguda.

O foco de Gota d’água é a dinâmica entre classes, tendo a questão da moradia popular como veículo – tando que a peça é hoje utilizada na formação política dos integrantes de movimentos de sem-teto. Mas não poderia deixar de ser, a despeito do silêncio dos autores na apresentação, um trabalho sobre como opera a desigualdade de gênero em quaisquer circunstâncias. Isso é marcado inclusive na forma como a dramaturgia se desenrola. Enquanto os três personagens masculinos principais mantém os nomes da Medeia de Eurípedes – Jasão, Creonte e Egeu – todas as mulheres têm nomes contemporâneos. É como se não importasse os dois mil e quatrocentos anos decorridos desde a estreia da tragédia de Eurípedes: o poder investido aos machos sobre a vida das mulheres permaneceu praticamente intocado e eles continuam os mesmos semi-deuses.

Além disso, a encenação deixa clara a demarcação dos espaços. Nas indicações sugeridas na peça, todos os ambientes são apresentados simultaneamente no palco, mas iluminados apenas quando alguma ação se desenrola naquele ponto específico. Há a casa de Joana, a oficina de Egeu, o botequim e o escritório de Creonte. Mulheres e homens raramente se misturam em cena, e a peça várias vezes contrapõe a interpretação de um mesmo fato pelos dois grupos: bem no início, enquanto eles festejam a sorte de Jasão por ter sido escolhido para casar com a filha do ricaço, elas se compadecem do destino de Joana, e tentam ampará-la da melhor forma possível.

Assim como Medeia, Joana também escala seu ódio até decidir matar os próprios filhos em um ato de desespero. A forma como a trama se desenrola torna muito mais factível sentir empatia por Joana do que por Medeia que, até hoje, continua sendo descrita como “a bruxa louca que mata os filhos por ciúme”. Ao mesmo tempo em que pode ser vista como proto-feminista, a peça de Eurípedes cristalizou para posteridade um estereótipo complicado contra a mulher que reclama. Como não se identificar com essa fala de Joana?

“Me responda, mestre Egeu,
o senhor alguma vez já sentiu
a clara impressão de que alguém lhe abriu
a carne e puxou os nervos pra fora
de uma tal maneira que, muito embora
a cabeça inda fique atrás do rosto,
quem pensa por você é o nervo exposto?”

Gota d’água é escrita em versos, emulando a tradição do teatro grego, mas com linguajar e construções correntes na década de 1970 e usados de maneira extraordinária para exprimir as tensões da trama. Perto do fim, quando Joana já não tem mais esperança alguma, sua confusão se expressa na forma de palavras formalmente inexistentes, mas absolutamente concretas para o contexto da personagem:

“Mas inverta o segmento,
intensifique a mistura,
temperódio, lagrimento,
sangalho com tristezura,
carneto, venemoinho,
remexa tudo por dentro,
passe tudo no moinho,
moa a carne, sangre o coentro (…)”

Esta nova edição da Civilização Brasileira é, infelizmente, pelada: não tem notas nem quaisquer outros acréscimos que ajudem a identificar as músicas da peça – e várias delas nunca foram gravadas – ou que mesmo atualize uma leitura crítica do trabalho.

Seja como for, a leitura da peça foi de um impacto absurdo. Vi recentemente a montagem de Roda Viva (também de Chico) no Teatro Oficina – e, na boa, Gota d’água é infinitamente melhor. Se topar com o livro, não perca a oportunidade de levá-lo, pois sabe-se lá quando haverá outra edição dessa Medeia tão contemporânea.

Já Medeia, a beagle, está com quase quinze anos agora. Já não escuta muito bem, não sobe mais no sofá e cambaleia ao acordar de madrugada para beber água.

Dessa Medeia, começamos a nos despedir aos poucos, com o coração partido.

Renata Beltrão – Recifense, jornalista de formação, mora em São Paulo e trabalha com comunicação institucional e governamental. 

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