Não há necessidade de ter um doutorado em comunicação para saber que uma manchete de jornal tem mais impacto na formação de opinião do que a leitura de uma reportagem, não importa se impressa, sonora ou digital.
A média das pessoas não tem tempo e, muitas vezes, interesse em ler o texto integral de notícias sobre situações de crise como, por exemplo, a deflagrada pelo assassinato de jornalistas na revista francesa Charlie Hebdo. A manchete é a percepção que fica e que acaba servindo como base para que as pessoas formem a sua opinião.
Quando um site noticioso publica a manchete “Em vídeo, Amedy Coulibaly diz ser do Estado Islâmico. Autor de ataque a mercado diz ter ajudado os irmãos Kouachi”, mas no texto na noticia afirma: “Um homem que seria Amedy Coulibaly, morto pela polícia após manter reféns em um mercado judeu de Paris, aparece em um vídeo publicado neste domingo (11) na internet”, não é difícil perceber que a publicação induziu o leitor a acreditar que Amedy é o protagonista do vídeo e da confissão de que participou do atentado.
Casos como esse se repetem diariamente na imprensa, que invariavelmente justifica a distorção entre manchete e texto como uma decorrência da necessidade de condensar a informação num título de poucas palavras. Quem já trabalhou em jornal ou em telejornal sabe que sintetizar num título todo o conteúdo de uma notícia é uma tarefa muito complexa. Em geral erra-se mais do que se acerta. As justificativas técnicas são plausíveis, mas o problema não está aí, e sim nas consequências que a distorção provocará no público.
A dinâmica industrial da maioria das redações contemporâneas leva os profissionais a priorizar as questões estéticas e as normas editoriais na elaboração de títulos e textos de abertura, deixando pouco tempo para a avaliação do contexto global de uma notícia. Sintetizar um fato, número ou evento em menos de 15 ou 20 palavras é um trabalho que exige muita reflexão e que não pode se transformar num ato mecânico porque os desdobramentos podem ser irreversíveis, principalmente agora, na era digital, quando a imprensa deixou de ser um coadjuvante na política mundial para ser um protagonista central.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]
As normas editoriais foram desenvolvidas pelos veículos da imprensa para otimizar o processo de produção industrial de notícias. Só que, na era digital, a expansão geométrica na difusão de notícias e a ampliação das audiências fazem com que as consequências sociais da circulação viral de notícias passem a ser mais relevantes do que a eficiência da máquina de produção de conteúdos informativos. Isso faz com que a atitude dos jornalistas diante da sociedade passe a ser mais relevante do que sua capacidade de cumprir as regras dos manuais de redação.
Entre os anos 1930 e 60, os governos eram os maiores responsáveis pelo desenvolvimento das percepções que alimentavam o processo de formação da opinião das pessoas. Na época de Hitler, e logo depois da Segunda Guerra Mundial, a grande imprensa tinha um papel secundário diante dos governos e exércitos. As rádios, por exemplo, seguiam incondicionalmente o roteiro da propaganda oficial. Já no período da Guerra Fria, os jornais e a televisão continuaram seguindo a estratégia governamental, mas passaram a usar o discurso da isenção e objetividade para tentar criar a percepção de independência.
Agora na era digital surge um fenômeno novo. Os governos perderam o controle absoluto sobre a circulação de notícias. Meios de comunicação, como as redes sociais, passaram a ocupar um lugar privilegiado na formação das percepções públicas. Isso altera a postura dos jornalistas diante da busca, edição e publicação de notícias. Se por um lado a ditadura das normas editoriais está sendo relativizada pela evolução constante e acelerada das novas tecnologias, por outro os profissionais deixaram de ser patrulhados apenas pelos patrões e são agora submetidos ao criticismo cada vez mais agudo dos usuários de redes sociais.
As percepções das audiências digitais são geradas de forma cumulativa por meio da recepção continuada de mensagens noticiosas. Hoje, uma percepção não segue mais um processo linear e causal como o que ocorre na leitura de uma reportagem ou análise num jornal ou documentário de TV. O contato das pessoas com a realidade representada pela imprensa ocorre de forma não organizada e é construída, cada vez mais, a partir do estabelecimento de correlações entre os dados noticiados.
O caso Charlie Hebdo é um exemplo típico de como o conjunto de manchetes acaba gerando uma percepção diferente daquela que sugerida por textos sequenciais e causais. As manchetes induziram as pessoas a identificar o islamismo com radicalismo e terrorismo, embora nos textos esta associação fosse até condenada. O acúmulo de manchetes distorcidas ou descontextualizadas acaba gerando uma percepção que torna o islamismo um elemento indesejável em sociedades como a europeia, mais ou menos como os nazistas fizeram com a população alemã na relação com os judeus, antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
Há uma enorme responsabilidade da imprensa e dos jornalistas em relação ao desenvolvimento de percepções públicas sobre o islamismo, que hoje reúne cerca de 1,6 bilhão de adeptos em 49 países, quase 1/3 da população mundial, e 62% deles morando na Ásia. Os jornalistas ainda não se deram conta de que o chamado fundamentalismo islâmico é protagonizado por uma minoria ínfima de seguidores do islamismo no mundo árabe. A obsessão com o combate ao terrorismo vai acabar associando todos os muçulmanos do planeta a uma percepção que não tem nada a ver com a realidade.
Carlos Castilho/Observatório da Imprensa