Depois de 24 dias de crise política e social, a maior desde que a ditadura militar terminou, em 1990, o Governo chileno de Sebastián Piñera se abriu para mudar a Constituição de 1980, herdada de Augusto Pinochet, num passo sem precedentes para a direita nos últimos 30 anos. O anúncio foi feito na noite de domingo pelo ministro do Interior, Gonzalo Blumel, após uma reunião liderada pelo presidente e da qual participaram altos representantes do bloco governista. Não há mais detalhes sobre como será o processo, embora o Executivo esteja comprometido com um Congresso constituinte, uma ampla participação dos cidadãos e um plebiscito ratificador. Se isso se tornar realidade, será a primeira vez na história que o Chile terá uma Constituição discutida em democracia.
“É um feito histórico. O fim da transição para a democracia no que diz respeito ao aspecto constitucional, uma grande dívida. A explosão social vivida no Chile desde 18 de outubro colocou isso em evidência”, comenta Javier Couso, um acadêmico da Universidade Diego Portales e professor da Universidade de Utrecht. Para Tomás Jordán, que coordenou o processo constituinte do segundo Governo de Michelle Bachelet (2014-2018), “é a primeira vez desde 1990 que a direita se abre a uma nova Constituição, de modo que existe um consenso político da direita e da esquerda por uma nova carta fundamental”. “É uma mudança na linha da história chilena”, diz ele, porque será discutida na democracia: “Todas as Constituições — as de 1833, 1925 e 1980 — foram precedidas de guerra civil, barulho de sabres ou golpes de Estado”.
Os protestos de 2011
A mudança da Constituição começou pouco a pouco a ganhar força na sociedade chilena desde os protestos estudantis de 2011. Foi então que ficaram evidentes as dificuldades para mudar certas leis, em razão do elevado quórum requerido, como a Lei Orgânica Constitucional do Ensino (LOCE) “Muitos dos direitos sociais que foram discutidos na esfera pública nos últimos anos — o aborto, a saúde, a titularidade sindical, os direitos da água — esbarram na Constituição”, explica Claudio Fuentes, professor da Universidade Diego Portais
Couso dá um exemplo: “A Constituição de 1980 estabelece questões que seriam consideradas exageradas em outros países, como que a previdência social seja prestada por instituições públicas ou privadas, o que confere status constitucional aos administradores de fundos de pensão (AFP).” “Se uma lei acabasse com esse sistema [de capitalização individual em vigor desde 1981, [pioneiro no mundo] e permitisse um semelhante ao da Inglaterra, Alemanha ou Espanha, alguém poderia recorrer ao Tribunal Constitucional (TC)”. Para o acadêmico, o TC chileno atua como uma terceira câmara e durante 30 anos permitiu o poder de veto à direita: “É um dos mais poderosos do planeta”, explica Couso.
Nestes dias de crise, marcados por protestos em massa pacíficos e por ações de grupos violentos, o presidente Piñera e a maior parte de seu bloco se mostraram a favor de reformas constitucionais. Foi em uma entrevista ao EL PAÍS que o presidente falou pela primeira vez de uma mudança na Constituição, embora somente na noite deste domingo seu ministro do Interior tivesse revelado a decisão do Governo, em meio a uma complexa situação política e social que deixou 20 mortos — 12 por incêndios, três por atropelamento de carros e cinco por ação de agentes das forças de segurança, o que está sendo investigado.
Empurrado pelos protestos, que o deixaram com 13% de popularidade, e por vozes que de seu próprio setor clamavam pela superação da Constituição de 1980 — como a do presidente da Renovação Nacional, Mario Desbordes —, Piñera tomou a decisão de se abrir à maior mudança política das últimas décadas.
Resistências a uma Assembleia Constituinte
O nó está agora na fórmula: boa parte dos governistas resiste a uma assembleia constituinte, a fórmula defendida pela oposição e movimentos civis. Até agora, o Governo de Piñera não esclareceu se seria este Congresso ou o eleito em 2021 que teria a função de mudar a Constituição e se será o Executivo que enviará um texto que, após passar pela discussão parlamentar, será ratificado por um plebiscito.
Para alguns especialistas, como Sergio Verdugo, professor associado da Universidade do Desenvolvimento (UDD), é preciso ter cuidado com as altas expectativas suscitadas pelas assembleias constituintes: “As constituições não podem corrigir problemas de saúde ou de previdência se não forem acompanhadas de políticas públicas bem projetadas e que sejam estáveis ao longo do tempo”, alerta. O que até alguns anos atrás era uma discussão acadêmica e da elite política se transformou em uma demanda social.
Atualmente, várias pesquisas revelaram a importância que a mudança na Constituição adquiriu. O estudo recente do Núcleo Milênio em Desenvolvimento Social (Desoc), do Centro de Microdados da Universidade do Chile e do Centro de Estudos de Conflitos e Coesão Social (COES) mostrou que oito em cada dez chilenos são a favor de uma nova Carta fundamental. A edição impressa da Constituição de 1980 ficou entre os livros mais vendidos do país nas últimas semanas. “É surpreendente como aumentou o interesse dos cidadãos por uma nova Constituição”, analisa Fuentes, autor do livro El Fraude: El Plebiscito de la Constitución de 1980.
“Foi a maior fraude da história no Chile: um processo convocado em setembro de 1980 por Pinochet, com um mês de antecedência, sem que houvesse censo eleitoral e com a oposição sem permissão para apresentar sua visão”, explica o acadêmico. Mas não se trata apenas de um problema de legitimidade de origem. Segundo Verdugo, “existem diferentes constituições no mundo cuja origem não é democrática — como a do Japão ou a dos Estados Unidos — e que ganharam legitimidade no decorrer do tempo”. “No caso do Chile, é uma Constituição que divide, e não que une os chilenos, por isso tem um problema de legitimidade que não se relaciona apenas à sua origem.”
A de 1980 foi uma Carta fundamental que entrou em vigor somente quando se iniciou o primeiro Governo democrático, em 11 de março de 1990. Couso lembra que seu ideólogo, Jaime Guzmán — assassinado em 1991 —, assinalava: “Se os adversários chegarem a governar, se sentirão constrangidos a seguir uma ação não muito diferente do que se almejaria, porque — com o perdão da metáfora — a margem de alternativas que o campo impõe aos que nele jogam é suficientemente reduzida para tornar o oposto extremamente difícil”.
Um dia antes da mudança de regime, a ditadura decretou uma dezena de leis orgânicas constitucionais que demandariam um quórum de três quintos ou dois terços, quando a maioria das iniciativas legais exige quatro sétimos. Foram chamadas de leis de amarração. A centro-esquerda ficou com as mãos atadas e liderando uma transição complexa: com Pinochet como comandante-chefe do Exército até 1998 e com as figuras dos senadores nomeados, conforme indicava a Constituição, o que não lhe permitia exercer sua maioria política.
Foi em 2005, no Governo do socialista Ricardo Lagos (2000-2006), que foram eliminados alguns dos enclaves autoritários da Carta Fundamental, como a inamovibilidade dos comandantes-chefes das Forças Armadas ou dos próprios senadores nomeados. No segundo mandato de Michelle Bachelet (2014-2018), cerca de 200.000 pessoas participaram de discussões para uma nova Constituição, recolhidas por um projeto apresentado ao Congresso alguns dias antes da mudança de Governo, em março de 2018. O ministro do Interior de Piñera antecipou que o trabalho do Governo anterior será considerado no processo que se inicia no Chile.