Nos anos 1980, senhoras católicas do bairro de Santana em São Paulo se juntaram para protestar contra o que consideravam imoral na programação da TV brasileira.
Ficaram conhecidas como as “Senhoras de Santana”, uma espécie de TFP formado só por velhinhas. Um dos principais alvos do grupo era o programa TV Mulher da Rede Globo, em que a sexóloga Marta Suplicy falava abertamente sobre sexo. Elas chegaram a ir até Brasília entregar pessoalmente ao ministro da Justiça um manifesto contra a pornografia na televisão. Foram tão bem recebidas pelos militares, que chegaram a ser convidadas a integrar órgãos censores do regime. Elas se chocavam mais com educação sexual na TV do que com a violência da ditadura militar.
Quase 40 anos depois, jovens do MBL reencarnaram as Senhoras de Santana e assumiram o legado da carolice organizada. Eles ficaram chocados com a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” em Porto Alegre, que tratava de temas ligados ao universo LGBT. O grupo enxergou apologia à pedofilia e à zoofilia em diversas obras e liderou, ao lado dos mais tacanhos grupos conservadores, uma campanha massiva contra a exposição e um boicote contra o Santander, banco que a patrocinou através da Lei Rouanet.
Apesar da chucrice que é enxergar apologia de qualquer coisa em obras de arte, o protesto é legítimo. A expressão da estupidez é um direito constitucional. Mas não deixa de ser curioso ver como nossos jovens ditos liberais modernos não se acanham em formar fileiras com a direita mais conservadora para atacar qualquer vulto que considerem de esquerda.
O MBL se defende da acusação de carolismo afirmando que o principal problema é o uso de dinheiro público para financiar uma exposição que agride parcelas da sociedade. É engraçado esse argumento vindo de uma turma que sistematicamente agride parcelas da sociedade e que já recebeu ajuda financeira de partidos políticos bancados pelo Fundo Partidário, criado com dinheiro público. A crítica à Lei Rouanet também é curiosa. Trata-se de uma lei essencialmente liberal, que transfere às empresas a escolha dos eventos culturais que irá patrocinar.
O atraso venceu e o Santander cedeu à pressão, encerrando a exposição. No dia seguinte, o Ministério Público enviou dois promotores para verificar se as denúncias faziam sentido. Um promotor da Infância e da Juventude e uma coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação e Família de Porto Alegre vistoriaram as obras e foram taxativos:
“Fomos examinar in loco, ver realmente quais obras que teriam conteúdo de pedofilia. Verificamos as obras e não há pedofilia.”
“Não há crianças e adolescentes em sexo explícito ou exposição de genitália de crianças e adolescentes. Também não há obras que façam com que a criança seja incentivada a fazer sexo com outra criança.”
Nas redes sociais, imagens das obras eram descontextualizadas e criminalizadas por gente que vê comunismo até na bandeira do Japão.
Não adiantaram as declarações do Ministério Público. O MBL e sua turma já haviam destampado o bueiro do conservadorismo radical. Nas redes sociais, imagens das obras eram descontextualizadas e criminalizadas por gente que vê comunismo até na bandeira do Japão.
Na Câmara, o deputado Jean Wyllys (PSOL) informou em plenário que o Ministério Público não havia encontrado referências à pedofilia nas obras e foi interrompido por Major Olimpo aos berros de “mentiroso! mentiroso!”. Ao tomar a palavra, o major disse que “não houve posicionamento do Ministério Público”.
Marco Feliciano aproveitou o revival sessentista para dizer que “não teve ditadura aqui. Foram 20 anos e apenas 300 pessoas mortas.” O pastor provavelmente concorda com Jair Bolsonaro, que disse que “tem que fuzilar” os responsáveis pela exposição. No Twitter, o filho de Bolsonaro também lançou mão de mentiras absurdas para demonizar a exposição:
Mesmo alertado, o filhote de Bolsonaro não deletou a postagem.
A estratégia vitoriosa de Donald Trump de taxar de “fake news” qualquer notícia que lhe contrarie, vem sendo utilizada em larga escala pelo MBL e seus colegas da direita brasileira. Não é à toa que Kim Kataguiri, principal expoente do grupo, demonstrou sua preferência pela candidatura Trump nas eleições dos EUA, país que considera “a polícia do mundo”.
O delírio conservador não se encerrou em Porto Alegre. Em Mato Grosso do Sul, deputados abriram um boletim de ocorrência contra uma artista plástica mineira na última quinta-feira. Eles foram capazes de enxergar apologia à pedofilia nesse quadro:
A artista Alessandra Cunha, conhecida como Ropre, batizou a obra de “Pedofilia” e tinha a intenção denunciar o machismo e a violência sexual contra crianças. No auge da loucura coletiva, o quadro foi apreendido pela polícia, a coordenadora do museu foi intimada a depor na delegacia, e deputados solicitaram que o nome da artista fosse incluído no cadastro estadual de pedófilos. Não sei se as Senhoras de Santana seriam capazes de tamanha ignorância. É atrasado até para os padrões dos anos 1980.
A polêmica criada virou um dos temas centrais de um país que vive gigantesca crise política e financeira. O MBL pautou a imprensa e passou a semana inteira estimulando o assunto em suas redes sociais. Nunca se viu tamanha mobilização desses setores contra as denúncias de corrupção que assolam o governo de Michel Temer, por exemplo.Na mesma semana, outra notícia muito mais relevante passou apenas lateralmente no debate público: sete terreiros de umbanda e candomblé foram invadidos e destruídos por traficantes – que seriam ligados à igrejas evangélicas – em Nova Iguaçu nos últimos meses, um acontecimento que não é incomum e que já aconteceu em outros lugares do Brasil. Esse grave atentado à liberdade religiosa não mereceu a mesma atenção do MBL e dos religiosos que se ofendem com obras de arte que consideram desrespeitosas ao cristianismo.
É triste ver jovens liberais, que poderiam arejar a direita brasileira com ideias mais progressistas, fazendo coro com a bancada evangélica e alimentando os setores mais retrógrados da sociedade. Assim como as Senhoras de Santana, eles escandalizam mais com um pênis exposto numa obra de arte do que com um deputado exaltando na Câmara um torturador do regime militar.
João Filho/The Itercept