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Claudia Camara – 07/01/24

Boa noite Espelho Claudia Camara ¹ Eu vou falar porque transbordo. Só porque não tem jeito, vou dizer adagas afiadíssimas, impiedosas, sobre sua carne. Não me olhe ou esmorecerei e minha voz vai se calar, exausta de compaixão. Não me olhe, porque as palavras sairão como cuspes lançados contra seu rosto. Escarros antigos, empedrados de dores caladas. Não, por favor, não desista. Não cometerei escatologias de espécie alguma, prometo. Mas não me olhe. Ou engolirei os cacos da verdade que agora, encara o seu rosto sem, no entanto, olhar para você. E sangrarei inutilmente sobre palavras que não me cabem. Escuta. É quase certo que eu não te ame mais. Carrego sentimentos morredouros que rangem cada vez que respiro. Adivinho os estertores da esperança. Imagino apenas e, juro, espero estar errada. No começo não era assim. No começo eu vivia sob as bênçãos da ignorância. Eu era o rio caudaloso em sua primeira água rumo ao oceano. Nunca mais essa liberdade que só os intrépidos, que só os inocentes, já que, você bem o sabe, liberdade é privilégio dos ignaros. Mas isso eu já disse e não quero esgotar sua boa vontade, enovelando palavras, tecendo sensações que, você sabe, são minha razão e conforto. Eu, cega de eternidade, rolando solta por entre as frinchas da terra, abrindo caminhos com a voracidade dos recentes. Sei que metaforismos são irritantes, quando se trata de acontecimentos com datas e suores. Como agora, quando confesso o meu desamor por você. É um processo que, embora abissal, não surpreenderá seus passos com um vazio súbito, sem alardes. Estou convivendo com o desfolhamento desse legado que me foi deixado como testamento de vida. Não o pedi. Entende isso? Me foi ordenado como também veio a sentença: deve crescer, multiplicar-se e buscar a felicidade resoluta e, antes de tudo, amar aos outros como a si mesmo. Percebe porque nunca experimentei o amor? Inventei, modelei meticulosamente histórias formidáveis mas que, você sabe, serviria em diversos protagonistas. Qualquer um. Os que foram. Os que são. Serão? Não se preocupe, não choro enquanto confesso tantos silêncios. É que agora, como muitas vezes, me acontece o frio nos olhos e as águas salobras vêm protegê-los de alguma agudez indesejada deste sentido. Por exemplo, não verei o cansaço das suas carnes. Sua testa desolada e cabelos desconsolados sobre ombros. Não verei seus olhos abaixados, perscrutando sua alma enquanto escovo ancestralidades, trazendo-as à luz impiedosa da realidade. Olha. Vê que não há amor possível diante de tal constatação: você não cumpriu com a promessa e não é quem deveria ser. Ou poderia. Seus sonhos meninados persistem enquanto o tempo arrancou cada uma das pontes suspirosas entre a possibilidade e o nunca. Não é possível que não tenha percebido isto! E, desculpe, mas eles não lhe caem nada bem agora que já não conta com a benevolência do futuro. Não quero postar-me diante da sua inércia. Não suporto mais a docilidade com que mimetiza minha dor. Apago a luz. ¹ Claudia Camara * Belo Horizonte, MG  Claudia Camara é mineira de Belo Horizonte, cidade para onde sempre volta, embora viva fazendo malas e planos com os olhos para muito além das montanhas. Algumas vezes foi e experimentou o Rio de Janeiro e Paris. Mas voltou. Sempre volta. Escritora, desde sempre, mãe desde 1987 (confirmada no posto em 1998), publicitária (ainda), por motivos justos. Jura de pés juntos que vai envelhecer em Paris. Publicou 5 livros, o mais recente a novela Quinze dias, sete anos e alguns minutos, pela Editora Biruta, São Paulo (finalista do Prêmio Jabuti na categoria infanto-juvenil). Criação de uma série para TV La minute Féminine comprada pela produtora francesa La Parisienne d’Animation e, em fase de produção, o livro Sol no céu da nossa casa.

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Valter Hugo Lemos – Poesia – 05/01/24

Boa noite Vou buscar-te ao fim da tarde Valter Hugo¹ vou buscar-te ao fim da tarde, porque a noite só escurece contigo ao meu lado, porque a noite aprende por ti o caminho aberto das estrelas vou buscar-te ao fim da tarde, e verás como preparei a casa, como escolhi a música, como, enfim, espalhei os objectos mais impressionados contigo, os que ganharam vida por se interporem na espessura estreita que vai do meu ao teu coração e não mais te devolvo, correndo todos os riscos de não amanhecer nunca numa loucura propositada por ti não mais te devolvo, ocuparás o mundo debaixo e sobre mim, e não haverá mais mundo sem que seja assim ¹Valter Hugo Lemos *Saurimo, Angola – 25 de setembro de 1971

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Fagundes Varela – Poesia – 30/12/23

Bom dia Deixa-me! Fagundes Varela ¹ Quando cansado da vigília insana Declino a fronte num dormir profundo, Por que teu nome vem ferir-me o ouvido, Lembrar-me o tempo que passei no mundo? Por que teu vulto se levanta airoso, Tremente em ânsias de volúpia infinda? E as formas nuas, e ofegante o seio, No meu retiro vens tentar-me ainda? Por que me falas de venturas longas, Por que me apontas um porvir de amores? E o lume pedes à fogueira extinta, Doces perfumes a polutas flores? Não basta ainda essa existência escura, Página treda que a teus pés compus? Nem essas fundas, perenais angústias, Dias sem crenças e serões sem luz? Não basta o quadro de meus verdes anos Manchado e roto, abandonado ao pó? Nem este exílio, do rumor no centro, Onde pranteio desprezado e só? Ah! não me lembres do passado as cenas, Nem essa jura desprendida a esmo! Guardaste a tua? a quantos outros, dize, A quantos outros não fizeste o mesmo? A quantos outros, inda os lábios quentes De ardentes beijos que eu te dera então, Não apertaste no vazio seio Entre promessas de eternal paixão? Oh! fui um doido que segui teus passos, Que dei-te em versos de beleza a palma; Mas tudo foi-se, e esse passado negro Por que sem pena me despertas n’alma? Deixa-me agora repousar tranqüilo, Deixa-me agora dormitar em paz, E com teus risos de infernal encanto Em meu retiro não me tentes mais! ¹ Luiz Nicolau Fagundes Varella * Rio Claro, RJ. – 1841 d.C + Niterói, RJ. – 1875 d.C

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Cristiane Neder – Poesia – 29/12/23

Boa noite Águas de Forestier Cristiane Neder ¹ O vinho que toca seus lábios desperta o pecado em um pobre pagão que sonha com o paraíso, onde todas as águas se transformam em vinho, dos rios, lagos, marés e cachoeiras, salgadas, doces, porém todas vermelhas. Lavando seus pés, molhando os seus seios, escorrendo sobre todo seu corpo o doce veneno, que nos embriaga a sede de outras paixões. Pequenos Bacos brincando de serem anões, e todo pecado será desculpado por todo motivo impulsionado por prazer. Toda musa será deusa, todo ateu será José, e o pecado é não beber da fonte das águas de Forestier. ¹ Cristiane Neder * São Paulo. SP. – 18 de agosto de 1969 d.C Cristiane Neder é paulistana, nasceu em 18 de agosto de 1969. Formou-se em Colegial Técnico em Propaganda e Publicidade em 1989 no CSJT, fez faculdade de Comunicação Social em Rádio e Televisão na Universidade São Judas Tadeu, formando-se em 1994. Faz atualmente Mestrado em Comunicação e Artes, na ECA, USP, em Cinema, Rádio e Televisão. Escritora e poeta, publicou em 1992 o seu primeiro livro, Revolution, por Massao Ohno Editor. Apresenta livros e autores dentro do programa Viva Show no canal de televisão CNT/GAZETA todas as semanas, pela manhã, programa transmitido para todo o Brasil via cabo ou por parabólica. Tem vários prêmios de literatura e escreve para diversos jornais literários. É professora de LPT, Leitura e Produção de Texto, na ETESP, situada dentro da FATEC. Foi candidata a Deputada Federal pelo PV nas eleições de 1998, tendo como metas principais a educação, a cultura e as artes em geral, com uma plataforma de campanha centrada na elaboração de legislação complementar de incentivo a essas áreas. Foi sua primeira eleição como candidata e não se elegeu.

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Maria Teresa Horta – Poesia – 28/12/23

Boa noite. Os silêncios da fala Maria Teresa Horta¹ São tantos os silêncios da fala De sede De saliva De suor Silêncios de silex no corpo do silêncio Silêncios de vento de mar e de torpor De amor Depois, há as jarras com rosas de silêncio Os gemidos nas camas As ancas O sabor O silêncio que posto em cima do silêncio usurpa do silêncio o seu magro labor. ¹ Maria Teresa Mascarenhas Horta * Lisboa, Portugal – 20 de Maio de 1937

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Vinícius de Moraes – Poesia – 27/12/23

Boa noite A que há de vir Vinícius de Moraes ¹ Aquela que dormirá comigo todas as luas É a desejada de minha alma. Ela me dará o amor do seu coração E me dará o amor da sua carne. Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios Ela é a querida da minha alma Que me fará longos carinhos nos olhos Que me beijará longos beijos nos ouvidos Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso. Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego Ela abandonará filho e esposo Abandonará o mundo e o prazer do mundo Abandonará Deus e a Igreja de Deus E virá a mim me olhando de olhos claros Se oferecendo à minha posse Rasgando o véu da nudez sem falso pudor Cheia de uma pureza luminosa. Ela é a amada sempre nova do meu coração Ela ficará me olhando calada Que ela só crerá em mim Far-me-á a razão suprema das coisas. Ela é a amada da minha alma triste É a que dará o peito casto Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração Ela é a minha poesia e a minha mocidade É a mulher que se guardou para o amado de sua alma Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele. Ela é o amor vivendo de si mesmo. É a que dormirá comigo todas as luas E a quem eu protegerei contra os males do mundo. Ela é a anunciada da minha poesia Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta. ¹ Marcus Vinicius de Mello Moraes * Rio de Janeiro, RJ. – 19 de Outubro de 1913 d.C + Rio de Janeiro, RJ. – 09 de Julho de 1980 d.C

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Demócrito Rocha – Poesia – 26/12/23

Boa noite O Rio Jaguaribe Demócrito Rocha¹ O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta por onde escorre e se perde o sangue do Ceará. O mar não se tinge de vermelho porque o sangue do Ceará é azul … Todo plasma toda essa hemoglobina na sístole dos invernos vai perder-se no mar. Há milênios… desde que se rompeu a túnica das rochas na explosão dos cataclismos ou na erosão secular do calcário do gnaisse do quartzo da sílica natural … E a ruptura dos aneurismas dos açudes… Quanto tempo perdido! E o pobre doente – o Ceará – anemiado, esquelético, pedinte e desnutrido – a vasta rede capilar a queimar-se na soalheira – é o gigante com a artéria aberta resistindo e morrendo morrendo e resistindo… (Foi a espada de um Deus que te feriu a carótida a ti – Fênix do Brasil.) E o teu cérebro ainda pensa e o teu coração ainda pulsa e o teu pulmão ainda respira e o teu braço ainda constrói e o teu pé ainda emigra e ainda povoa. As células mirradas do Ceará quando o céu lhe dá a injeção de soro dos aguaceiros – as células mirradas do Ceará intumescem o protoplasma (como os seus capulhos de algodão) e nucleiam-se de verde – é a cromatina dos roçados no sertão… (Ah, se ele alcançasse um coágulo de rocha!) E o sangue a correr pela artéria do rio Jaguaribe… o sangue a correr mal que é chegado aos ventrículos das nascentes … o sangue a correr e ninguém o estanca… Homens da pátria – ouvi: – Salvai o Ceará! Quem é o presidente da República? Depressa uma pinça hemostática em Orós! Homens – o Ceará está morrendo, está esvaindo-se em sangue … Ninguém o escuta, ninguém o escuta e o gigante dobra a cabeça sobre o peito enorme, e o gigante curva os joelhos no pó da terra calcinada, e – nos últimos arrancos – vai morrendo e resistindo ¹Demócrito Rocha * Caravelas, BA – 14 de Abril de 1888 d.C + Fortaleza, CE – 29 de Novembro de 1943 d.C

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Eduardo Alves da Costa – Poesia – 22/12/23

Boa noite. No Caminho com Maiakóvski Eduardo Alves da Costa ¹ Assim como a criança humildemente afaga a imagem do herói, assim me aproximo de ti, Maiakóvski. Não importa o que me possa acontecer por andar ombro a ombro com um poeta soviético. Lendo teus versos, aprendi a ter coragem. Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na Segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. Nos dias que correm a ninguém é dado repousar a cabeça alheia ao terror. Os humildes baixam a cerviz; e nós, que não temos pacto algum com os senhores do mundo, por temor nos calamos. No silêncio de meu quarto a ousadia me afogueia as faces e eu fantasio um levante; mas amanhã, diante do juiz, talvez meus lábios calem a verdade como um foco de germes capaz de me destruir. Olho ao redor e o que vejo e acabo por repetir são mentiras. Mal sabe a criança dizer mãe e a propaganda lhe destrói a consciência. A mim, quase me arrastam pela gola do paletó à porta do templo e me pedem que aguarde até que a Democracia se digne a aparecer no balcão. Mas eu sei, porque não estou amedrontado a ponto de cegar, que ela tem uma espada a lhe espetar as costelas e o riso que nos mostra é uma tênue cortina lançada sobre os arsenais. Vamos ao campo e não os vemos ao nosso lado, no plantio. Mas ao tempo da colheita lá estão e acabam por nos roubar até o último grão de trigo. Dizem-nos que de nós emana o poder mas sempre o temos contra nós. Dizem-nos que é preciso defender nossos lares mas se nos rebelamos contra a opressão é sobre nós que marcham os soldados. E por temor eu me calo, por temor aceito a condição de falso democrata e rotulo meus gestos com a palavra liberdade, procurando, num sorriso, esconder minha dor diante de meus superiores. Mas dentro de mim, com a potência de um milhão de vozes, o coração grita – MENTIRA! ¹ Eduardo Alves da Costa * Niterói, RJ, Brasil – 1936 Concluiu o curso de Direito na Universidade Mackenzie em 1952, em São Paulo SP. Por volta de 1960 organizou as Noites de Poesia, no Teatro Arena, em São Paulo. Participou no movimento dos Novíssimos, da Massao Ohno, em 1962. Entre 1962 e 1989 publicou a novela Fátima e o Velho, o romance Chongas e o livro de contos A Sala do Jogo. Recebeu, em 1978, o prêmio Anchieta de Teatro para a peça As Campainhas. Em 1994 foi lançado seu livro juvenil Memórias de um Assoviador. Entre 1996 e 1998 foi cronista do jornal paulistano Diário Popular. Seu único livro de poesia, No caminho, com Maiakóvski, foi publicado em 1985.

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JG. de Araújo Jorge – Poesia – 21/12/23

Boa noite. Gosto quando me falas de ti… JG. de Araújo Jorge ¹ Gosto quando me falas de ti… e vou te percorrendo e vou descortinando a tua vida na paisagem sem nuvens, cenário de meus desejos [tranqüilos Gosto quando me falas de ti… e então percebo que antes mesmo de chegar, me adivinhavas, que ninguém te tocou, senão o vento que não deixa vestígios, e se vai desfeito em carícias vãs… Gosto quando me falas de ti… quando aos poucos a luz vasculha todos os cantos de sombra, e eu só te encontro e te reencontro em teus lábios, apenas pintados, maduros, mas nunca mordidos antes da minha audácia. Gosto quando me falas de ti… e muito mais adiantas em teus olhos descampados, sem emboscadas, e acenas a tua alma, sem dobras, como um lençol distendido, e descortino o teu destino, como um caminho certo, cuja [primeira curva foi o nosso encontro. Gosto quando me falas de ti… porque percebo que te [desnudas como uma criança, sem maldade, e que eu cheguei justamente para acordar tua vida que se desenrola inútil como um novelo que nos cai no chão… “Quatro Damas” – 1965 ¹ José Guilherme de Araújo Jorge * Tarauacá, AC. – 20 de Maio de 1914 + Rio de Janeiro, RJ. – 27 de Janeiro de 1987

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José Mesquita – Poesia – 20/12/23

Boa noite Poema CXXX José Mesquita¹ A tarde cai. Anoitece. E que os sonhos se ergam. Brilhem os olhos Mais que as luzes. As paixões e o silêncio Somente a mim pertencem E ardem como o mormaço Que tua pele deixou na minha. Do livro inédito “O Ofício da Paixão” ¹José Leite Mesquita *Fortaleza, Ce. – 15 de março de 1948

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