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Violência contra a mulher é violência contra a humanidade

A violência contra a mulher é violência contra a humanidade. Enganam-se os machistas ao relegarem o problema como afeto somente ao ambiente doméstico. Não existe democracia sem Direitos Humanos. Na realidade, a violência contra a mulher vai além da física. Além do mais a violência contra o ser humano fere valores, normas, condutas e convenções. Cedo ou tarde, os indiferentes, omissos ou coniventes com esse “status quo” serão vítimas indiretas dessa barbárie doméstica, e praticada em diversos países como ato punitivo amparado por lei. Cabe ressaltar que a maioria dos homens não faz parte desse perfil machista. É preciso não mais argumentar com a máxima, cruel, de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.” É preciso também derrubar o mito de que a violência contra a mulher, o que vem logo à mente, é a pura agressão física. O Editor Violência contra a mulher: eu me manifesto e você? Vai ficar olhando? Por Marli Gonçalves * Mulheres apedrejadas, esquartejadas, violentadas, exploradas, baleadas, surradas, torturadas, mutiladas, coagidas, reguladas, censuradas, perseguidas, abandonadas, humilhadas. Até quando a barbaridade inaceitável vai vigorar? Eu me manifesto, sim, contra tudo que considero inaceitável. E não é de hoje. Desde pequena meto-me em encrencas por causa disso. Uma vez, tinha acho que uns 12 anos, e brincava na portaria do prédio quando ouvi um homem brigando com uma mulher do outro lado da calçada, ameaçando-a de morte, dando-lhe uns sopapos. Não tive dúvidas.[ad#Retangulos – Direita] Atravessei, entrei pequenina no meio deles, gritando forte por socorro, o que o assustou e fez com que ele parasse as agressões. Para minha surpresa, ao olhar para os lados, vi que havia muitos adultos assistindo à cena, impassíveis. Nunca me esqueci disso. Inclusive porque, quando voltei para casa, tomei uma bronca daquelas. Atraída pelos meus gritos, minha mãe tinha ido à janela, e assistiu. “E se ele estivesse armado e te matasse?” – ouvi. Creio que respondi que nunca ficaria quieta vendo aquela cena, onde quer que fosse, e que jamais seria resignada. Dentro de minha própria casa já havia assistido a cenas que teriam ido para esse lado, não tivesse sido minha mãe uma guerreira baixinha e desaforada, ela própria vítima de um pai tão violento que não o aceitava nem em sua carteira de identidade, nem em sobrenome. Minha avó materna teria sido morta por um “acidente”, em que um motorista de ônibus, que por ele teria sido pago, acelerou quando ela descia. Caiu, bateu com a cabeça na sarjeta, morrendo horas depois, de hemorragia, na pequena cidade do interior de Minas. Anos depois, senti em minha própria pele o desespero solitário da agressão, da humilhação, do medo. Em plena juventude e viço, em uma ligação amorosa complicada, de paixão e amor intenso que vi virar violência, agressão, loucura e insegurança, só saí viva porque mal ou bem sou de circo, e protegida pelos meus santos e anjos, daqui e do céu… Tentei não envolver ninguém, resolver, e quase virei primeira página policial. Tive a minha vida quase ceifada, ora por ameaça de facadas; ora por canos e barras de ferro, ora pela perda de todas as referências, ora pela coação verbal. Os poucos e únicos amigos que ainda tentaram ajudar também entraram no rol da violência. E os (ex) amigos que viraram as costas, ou faziam-se de cegos, desses também me lembro bem; inclusive de alguns que conseguiam piorar a situação e pareciam gostar disso, insuflando. Ou se calando. Ou me afastando. Deve ser bonito ver o circo pegar fogo. Desespero solitário, sim. Não há a quem recorrer. Polícia? Apoiam os homens. Delegacia da Mulher? Na época não existia, mas parece que sua existência só atenuou a dimensão do problema, que pode acontecer em qualquer lar, lugar, classe social. Lei? Veja aí a Lei Maria da Penha. Pensava já naquele tempo, meu Deus, e se eu ainda tivesse filhos para proteger, além de mim? Não poderia ter me livrado – concluo ainda hoje, pasma em ver como a situação anda, em pleno Século XXI. Hoje, acredito que curei minhas feridas, que não foram poucas, especialmente as emocionais. Há semanas venho tentando defender, aqui do meu cantinho, a libertação da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, mais uma das mulheres iranianas cobertas da cabeça aos pés pelo xador, a vestimenta preta que é uma das versões mais radicais do véu muçulmano. Mas esse, a roupa, não é o maior problema dela e de outras iranianas. Viúva, dois filhos, em 2005 Sakineh foi presa pelo regime fundamentalista do Irã. Em 2007, julgada. A pena inicial foram 99 chibatadas. O crime, adultério! Sua pena final, a morte por apedrejamento. Uma história que lembra a fascinante personagem bíblica de Maria Madalena, a moça que aguardava a morte por apedrejamento até ser salva por Jesus Cristo. Cristo provocou com uma frase que ficou célebre, e revelou-se futurista: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Esses iranianos estão querendo matar Sakineh e outras a pedradas, e com pedras pequenas, para que sofram mais; talvez porque sejam, acreditam, muito puros? A sharia, lei islâmica, devia prever cortar dedos, língua, furar os olhos desses brucutus modernos, hitlers escondidos sob mantos religiosos, protegidos por petróleo e riquezas? Não bastasse a novela de Eliza Samudio que, morta ou não, faltou ser chutada igual bola, e de tantas jovens, inclusive adolescentes, mortas pelos namoradinhos, a advogada que morreu no fundo da represa. Todo dia tem violência. No noticiário ou na parede do lado da sua, no andar de baixo, no de cima, na casa da frente. Nem bem a semana terminou e outro caso internacional estava na capa da revista Time, com o propósito de pedir a permanência das tropas de ocupação no Afeganistão. Na foto, na capa, a imagem chocante da afegã Aisha, 18 anos, que teve o nariz e as orelhas decepados pelo Talibã. Foi a punição à sua tentativa de fugir de casa, de uma família que a maltratava. Agora, Aisha está guardada em lugar sigiloso, com escolta armada, paga pela ONG Mulheres

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Sobre buracos negros e a banalidade da vida terráquea

“Quem sabe lá, onde o tempo como o conhecemos acaba e a realidade nos suga para dimensões desconhecidas, seja possível superar a sina triste das sociedades incapazes de enxergar a si mesmas” “E no entanto… no entanto… negar a sucessão do tempo, negar o eu, negar o universo astronômico são desesperos aparentes e consolos secretos… O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, desgraçadamente, é real; e eu, desgraçadamente, sou Borges.” Jorge Luis Borges, “Uma refundação do tempo”, em Outras Inquisições Num dia como o de hoje, como de ontem na verdade, a primeira imagem de um buraco negro foi divulgada. O feito é resultado do trabalho de uma série de cientistas que, para dizer de forma resumida e um tanto vulgar, triangularam imagens e informações capturadas por dezenas de satélites – foram feitos 420 cenários físicos diferentes – que integram o projeto Event Horizon Telescope – EHT. Para desespero cético dos terraplanistas, a publicação do estudo foi feita no The Astrophysical Journal Letter, um dos mais importantes periódicos da área. Na imagem divulgada, um círculo de luz em tom avermelhado ocupa a parte central de uma imagem escura com o miolo igualmente negro. Albert Einstein, em sua Teoria Geral da Relatividade, publicada 100 anos atrás, denominou os buracos negros dessa forma porque sua imensa massa de matéria concentrada gera uma gravidade tal que qualquer fóton ou estrela que passe perto dele é engolido. Sem contrariar a tese de Einstein, o que a imagem mostra em vermelho, laranja e amarelo é o disco de acreção, que se forma pelo movimento orbital e aquecimento das matérias que são atraídas para o centro do buraco negro. Distante 50 milhões de anos luz de nós, este buraco negro é do tamanho de três milhões de planetas terras. Sim, três milhões de vezes maior que esse ínfimo lugar no infinito do cosmos, onde 7 bilhões de seres humanos convivem em menos harmonia do que deveriam, embora de maneiras um tanto quanto pacíficas quando se leva em conta o grau de violências a que a maior parte das populações são submetidas. O abismo cósmico que nos separa do buraco negro recém descoberto bem que poderia nos parecer incompreensível, sobretudo por sua escala, mas quando se trata de produzir abismos, principalmente sociais, somos bastante mais competentes que os seres regidos pelas leis do universo. Poucos anos atrás o banco de investimentos Credit Suisse divulgou dados sobre a desigualdade no mundo. O estudo dava conta que 1% da população mundial possui cerca de 45% de toda a riqueza produzida no globo. Nesse mesmo planeta, que orbita em um universo que tende à entropia, a vida biológica opera em sentido contrário. As mais variadas espécies crescem e se multiplicam, dentre elas a humana, melhor dizendo, a despeito da espécie humana. Num paradoxo quase irreconciliável, 70 milhões de pessoas que nasceram no mesmíssimo planeta têm o direito à vida negado. Para todos eles inventaram eufemismos estranhos, como “refugiados”, “migrantes”, “pobres”, quando na verdade são, simplesmente, pessoas humanas. Diante de um cenário em que, em nome da economia, o sacrifício das gentes não somente é tolerado, mas celebrado debaixo de nossas barbas, a economia alega obedecer, da maneira mais vulgar possível – não raro evocando-se como justificativa irrefutável –, o que ela chama de “leis da natureza”. Os papas da economia, com seu assustador determinismo, definem os rumos da vida no planeta terra com uma certeza capaz de ruborizar, inclusive, a face desconhecida da mão invisível. Para Ilya Prigogine, autor de O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza (2011), a plasticidade do tempo opera no vão entre o determinismo absoluto e o puro acaso. A economia neoliberal é, talvez, o mais sofisticado e eficaz buraco negro produzido nesse diminuto planeta da Via Láctea. Trata-se uma força de atração que suga vidas para seu centro em nome da própria existência, sem dar-se conta de que, de forma radical, opera entropicamente. Em uma entrevista ao jornalista catalão Jordi Évole, o Papa Francisco salientou que nos esquecemos de chorar, ao fazer memória das vítimas da política anti-imigracionista da Europa, todas elas mortas no paradisíaco Mediterrâneo ou nos conflitos deflagrados na África e Oriente Médio. De certa forma, na Venezuela a situação guarda suas semelhanças. Nossos modos de vida se tornaram de tal forma pusilânimes com a dor do outro, que nosso choro foi engolido pelo vórtice de uma economia sacrificial que nos levou ao buraco negro da humanidade. É o tempo como desgraça existencial, tal qual na versão de Borges, do qual somos indiscerníveis. Há, no entanto, a memória e a sucessão do tempo. Talvez coubesse lembrar, nos dias pascais que se sucedem, que a figura mais conhecida do Ocidente, Jesus Cristo, deu sua vida como último sacrifício. Depois disso, todo o sacrifício, quer em sentido histórico, teológico ou social, é uma forma estúpida de satisfação hedonista. Em meio à relatividade múltipla do tempo, cientistas fotografam a existência de um buraco negro. Provam-no, enfim. Quem sabe lá, no buraco negro, onde o tempo como conhecemos acaba, onde a realidade nos suga para dimensões ainda desconhecidas, nós encontremos as lágrimas que esquecemos de chorar por nossos irmãos mortos. Ricardo Machado é jornalista e doutorando em Cultura e Significação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

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