O desmatamento registrado em Terras Indígenas da Amazônia entre 1º de agosto de 2018 e 31 de junho de 2019 foi 65% maior do que o período anterior, saltando de 260 quilômetros quadrados para 429,9 km², segundo dados preliminares disponibilizados na última quinta-feira (21) pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), na plataforma TerraBrasilis. Esta é a maior cifra registrada desde 2009. A área desmatada em TIs representa 4% da perda total no bioma Amazônico, no período analisado.
Segundo o Artigo 231 da Constituição Federal, Terras indígenas são bens da União, sendo reconhecido aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Historicamente, as TIs são as áreas mais preservadas do bioma e desempenham um papel importante na contenção do desmatamento na Amazônia.
Segundo dados do INPE, as TIs que registraram maior taxa de perda de floresta são: Ituna/Itatá, com 650% de aumento no desmatamento (de 15,89 para 119,92 km²), Apyterewa, com 334% de aumento (de 19,61 para 85,25 km²), e Cachoeira Seca, com 12% de aumento (de 54,2 para 61,2 km²).
As três reservas que encabeçam a lista estão localizadas na região da Terra do Meio, no Pará, Bacia do rio Xingu, em meio ao chamado Arco do Desmatamento da Amazônia. Desde o início do ano, as TIs desta região estão em alerta vermelho, com registros de invasões e violência contra populações tradicionais.
Em março de 2019, o Sistema de Indicação do Desmatamento por Radar da Bacia do Xingu (Sirad-X) já havia indicado o avanço do desmatamento ilegal na TI Ituna/Itatá, com a abertura de uma estrada ao sul do território, que abriga índios isolados.
Esta TI é uma área com restrição de uso para proteção desta comunidade indígena isolada, que impede a circulação de não-indígenas na região e evita contato até mesmo com outros indígenas. Ela ocupa uma área de 142.402 hectares e engloba os municípios de Altamira, Anapu e Senador José Porfírio. Em 9 de janeiro passado, a portaria que cria a restrição de uso da área foi renovada por mais três anos.
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), cerca de 87% desta Terra Indígena é sobreposta a registros irregulares do Cadastro Ambiental Rural (mecanismo criado para ajudar no ordenamento de terras do Brasil, com registros autodeclaratórios). Algumas áreas dentro da TI chegam a ter cinco registros de CAR, o que indica que o território está sendo disputado por vários grupos.
De acordo com dados do Sirad-X, pelo menos dois grupos estariam promovendo a abertura de clareiras na mata para delimitar regiões de domínio e firmar a ocupação, o que aumenta o risco de conflito violento. De fato, até mesmo uma equipe do Ibama foi alvo de tiros disparados por garimpeiros ilegais, durante uma operação de fiscalização nesta unidade em agosto passado.
Além disso, a TI Ituna/Itatá está localizada a menos de 70 km do principal canteiro de obras da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte. O início das obras aqueceu o mercado imobiliário rural da região e a destruição das florestas vem aumentando exponencialmente. Uma das condições para a construção da UHE era a implementação de uma base de proteção da Fundação Nacional do Índio (Funai) na TI, o que nunca se concretizou.
O segundo e terceiro maiores desmatamentos dentro de Terras Indígenas, nas TIs Apyterewa e Cachoeira Seca, estão relacionadas majoritariamente ao roubo de madeira, segundo levantamento do ISA. De acordo com dados do INPE divulgados nesta quinta-feira, proporcionalmente, Cachoeira Seca é a que acumula maior perda de floresta (10,6% de sua área total), seguida por Apyterewa (8%) e ituna/Itatá (5,53%).
Discurso anti-indígena X Desmatamento
A desaceleração das demarcações vem desde o Governo de Dilma Rousseff, considerado um dos que menos demarcaram desde a redemocratização do Brasil pela pressão da bancada ruralista. Durante os dois anos de Governo de Michel Temer, a situação se agravou. A única terra que chegou a ser homologada nesse período foi revertida na Justiça. Mas essa questão ganhou barreiras ainda maiores com Bolsonaro, o primeiro a falar abertamente que era contra demarcações.
Mesmo antes de assumir a presidência, Bolsonaro já acumulava declarações anti-indígenas. Durante a campanha, ele chegou a comparar populações indígenas a animais de zoológico e afirmou que não demarcaria “um centímetro a mais” de reservas para índios e quilombolas.
Em julho deste ano, o governo federal anunciou que havia finalizado a minuta de um projeto de lei que prevê a regulamentação da mineração em terras indígenas. Em setembro, o secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia (MME), Alexandre Vidigal de Oliveira, declarou que ainda naquele mês o projeto seria enviado ao Congresso. Até o momento, a matéria ainda não foi enviada para apreciação de deputados e senadores.
Ainda em setembro, em discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro voltou a atacar a população indígena, referindo-se a elas como “verdadeiros homens das cavernas”. Na ocasião, Bolsonaro declarou que líderes indígenas, como cacique Raoni, que vem mantendo grande protagonismo na defesa das comunidades indígenas e era cotado para o Prêmio Nobel da Paz, “são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”.
As declarações de Bolsonaro na ONU motivaram a publicação de uma “Carta de Repúdio” da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). “Alertamos para o aumento das invasões nos nossos territórios, e consequentemente da violência, contra as nossas lideranças, povos e organizações. E desde já responsabilizamos o Senhor Bolsonaro pelos conflitos que, alimentados por seus discursos publicamente anti-indígenas, possam atentar contra as nossas vidas”, diz a carta da APIB.
De fato, dados parciais do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) revelam que, até setembro de 2019, foram registrados 153 casos de invasão em terras indígenas de 19 estados brasileiros, o que representa mais do que o dobro de todo o ano de 2018, com a ocorrência de invasões de 76 terras indígenas, em 13 estados.
Segundo Ivar Busatto, coordenador geral da ONG Operação Amazônia Nativa (OPAN), primeira organização indigenista fundada no Brasil, o crescimento das pressões sobre as Terras Indígenas – e a consequente alta do desmatamento dentro destes territórios – é resultado do enfraquecimento que órgãos de controle, especialmente a Fundação Nacional do Índio (Funai), vem sofrendo ao longo dos últimos anos, potencializado pelo discurso anti-indígena de Bolsonaro.
“A Funai, nos últimos 5, 6 anos, está passando por um processo muito grande de redução de orçamento, de quadros, de incentivo para acompanhamento da proteção dos recursos dos territórios. É claro que quanto mais frágil é o órgão de defesa, de proteção, de acompanhamento das comunidades indígenas, as áreas ficam mais expostas […] E esse tipo de discurso [do governo Bolsonaro] chama para uma flexibilização ainda maior do controle interno das áreas”, diz.
Atualmente, o orçamento destinado à Funai é da ordem de R$ 78 milhões, por meio do Programa de Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas, cifra já considerada insuficiente por servidores do órgão. O Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2020, enviado em outubro pelo Governo Federal ao Congresso, reduz esse valor para R$ 46 milhões.
Cristiane Prizibisczki