Estudo constatou que 12% da água que sai de nossas torneiras está contaminada, imprópria para consumo. Mas há solução: universidades federais já desenvolvem tecnologias que podem eliminar a presença de químicos nos alimentos
Por Pedro Grigori, na Agência Pública
O brasileiro nunca consumiu tanto agrotóxico quanto hoje. O número de produtores que usam pesticidas na plantação cresceu 20% em 10 anos, segundo o IBGE, enquanto a aprovação para comercialização dos químicos subiu 135% em uma década, conforme mostrado nos novos registros publicados pelo Ministério da Agricultura. Apenas este ano, a pasta aprovou 169 novos produtos agrotóxicos e publicou a liberação de outros 197 registros.
Hoje são 2.263 produtos agrotóxicos no mercado, e um uso anual de mais de 500 mil toneladas, segundo o Ibama. Os venenos podem entrar no corpo por meio de contato com a pele, mucosa, pela respiração e pela ingestão. O risco é crescente devido à dificuldade em retirar os pesticidas dos alimentos e até mesmo da água.
Segundo pesquisadores consultados pela reportagem, ainda não há no mercado métodos que retirem totalmente o agrotóxico da água – o que reforça a importância de as autoridades monitorarem a qualidade da água.
Já no caso dos alimentos, deixar os produtos de molho na água sanitária, bicarbonato de sódio ou vinagre pode ajudar a retirar os tóxicos impregnados nas cascas – mas a medida não tem efeito nos casos em que o veneno chega à parte interna do produto.
Segundo dados do Ministério da Saúde dentro do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), mais de 1.300 cidades encontraram resíduos de agrotóxicos na água que sai das torneiras em medições feitas entre 2014 e 2017. Embora a maioria esteja abaixo do limite legal permitido no Brasil, não existem estudos sobre o potencial da mistura de diferentes agentes químicos.
O levantamento também descobriu que dentre os 5.570 municípios brasileiros, 2.931 não realizaram testes na sua água entre 2014 e 2017.
A maioria dos filtros encontrados no mercado, como o de barro, não têm capacidade de retirar os agrotóxicos. “Uma vez que o pesticida chega na água, ainda não se tem um processo bem substanciado e que garanta que o cidadão possa usá-lo para fazer a purificação”, diz o professor Antônio da Hora, que ministra disciplina de Recursos Hídricos no Departamento de Engenharia Agrícola e Meio Ambiente da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O motivo são as transformações sofridas pelo pesticida. “Quando o princípio ativo cai na água de um rio, que pode servir de fonte de abastecimento, as moléculas sofrem vários processos químicos e microbiológicos. A degradação se dá via luz do solar, além da oxidação, e a molécula produz outros compostos, chamados de subprodutos. Um agrotóxico pode ter um, dois, três ou até mais subprodutos”, explica a professora e pesquisadora do Departamento de Química da Universidade Estadual de Londrina Maria Josefá Yabe.
Porém, o professor de Recursos Hídricos da UFF Antônio da Hora informa que a população não precisa entrar em pânico sobre a presença de pesticida na água. “Não vejo esse sintoma a nível nacional. Talvez em uma região pontual ou outra, próximas às áreas de produção [agrícola]. Se você vê as resoluções do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) que dão o limite máximo de agrotóxico na água, vemos que estamos bem abaixo”, explica.
De acordo com dados do Sisagua, 0,3% de todos os casos de pesticidas detectados na água entre 2014 a 2017 ultrapassaram o nível considerado seguro para cada substância, de acordo com o limite legal brasileiro. Os limites brasileiros, porém, são inferiores aos europeus. Do total de torneiras brasileiras contaminadas, 12% estavam acima do limite considerado seguro na União Europeia.
Água engarrafada
Segundo especialistas, nem mesmo a água mineral seria totalmente segura, pois o recurso é retirado de mananciais subterrâneos ou nascentes, que não deixam de ser suscetíveis a contaminação. Entretanto, no caso de água mineral engarrafada, o produto precisa passar por uma avaliação criteriosa antes de chegar ao mercado. A cada três anos as empresas precisam apresentar à Anvisa uma análise completa da mercadoria.
A Resolução nº 274 de 22 de setembro de 2005 da Anvisa, que regulamenta a venda de águas envasadas e gelo no Brasil, define limites máximos permitidos das substâncias químicas que representam risco à saúde, inclusive de agrotóxicos. O glifosato, por exemplo, tem como tolerância 500 micrograma por litro.
Porém, um novo fabricante que pretenda vender água mineral não precisa passar por um processo de registro para colocar o produto no mercado, basta comunicar o órgão de vigilância local sobre o início da fabricação. “Para as águas envasadas, o foco das ações sanitárias está no controle pós-mercado, quando já estão em comercialização. Ressalta-se que todo estabelecimento que exerce atividade na área de alimentos deve ser inspecionado e licenciado pela vigilância sanitária local”, informou a Anvisa à reportagem.
A fiscalização do produto pode ocorrer durante a realização de atividades programadas ou como resultado denúncias, diz a agência fiscalizadora.
Cuidados que podem ser tomados com os alimentos em casa
Diferentemente da água, há modos simples de retirar os agrotóxicos impregnados em alimentos. A própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem um guia na página oficial onde dá recomendações, mas destaca que os métodos não surtem efeito nos casos em que o pesticida são absorvidos para a parte interna do alimento.
Na página, a agência ligada ao Ministério da Saúde recomenda “adquirir alimentos orgânicos ou provenientes de sistemas agroecológicos, assim como os chamados alimentos da ‘época’ (safra), que costumam receber, em média, carga menor de agroquímicos”. O guia explica que os pesticidas podem ser classificados em dois modos de ação, os sistêmicos e de contato. O primeiro grupo atua no interior das folhas e polpas, penetrando nelas. Já os de contato agem, principalmente, nas partes externas do vegetal, embora uma quantidade possa ser absorvida pelas partes internas. Com isso, lavar e retirar as cascas e folhas contribuem para a retirada de parte dos pesticidas, porém são incapazes de eliminar aqueles contidos no interior do alimento.
Os produtos sistêmicos são preferidos por muitos agricultores, e são usados principalmente quando a necessidade de atingir o alvo (erva daninha, fungo ou praga) é maior. O produto também rende mais. Enquanto é necessário mais de 70 gotas por centímetro quadrado de um fungicida de contato, a quantidade usada do sistêmico varia entre 30 e 50 gotas.
A Anvisa indica a imersão prévia dos alimentos por 20 minutos em água com hipoclorito de sódio (água sanitária), que pode diminuir também a contaminação por germes e micróbios.
Segundo a professora Maria Hosana Conceição da Faculdade de Farmácia da Universidade de Brasília (UnB), o ideal é usar água sanitária tradicional, ou seja, que contém apenas hipoclorito de sódio. Isso porque há diferentes versões com elementos que podem fazer mal à saúde.
“O hipoclorito de sódio é um bom oxidante, auxilia na preservação do alimento que vai ser consumido in natura e na retirada dos agrotóxicos que não penetram no fruto. Com isso, os pesticidas concentrados na casca são minimizados”, explica a professora, sugerindo o uso de uma colher (sopa) de água sanitária tradicional por litro de água.
A professora da UnB destaca que o cloro é prejudicial à saúde humana, por isso depois de deixar o alimento de molho é necessário lavá-lo com água corrente para retirar totalmente os resíduos.
Além disso, a especialista indica ainda a utilização do bicarbonato de sódio – também uma colher (sopa) por litro de água. “É um produto que vai proteger o alimento e pode reagir com alguns agrotóxicos que não penetram o fruto, diminuindo a exposição alimentar. E o bicarbonato tem uma base fraca. Usado até mesmo para minimizar a acidez do estômago, ele não traz o risco à saúde que consumir o cloro traz. Não vai danificar o alimento e ainda minimiza o risco de exposição aos pesticidas”, pontua.
Projetos promissores
Com o avanço da tecnologia, produções científicas estão sendo desenvolvidas no Brasil e no mundo para tentar acabar totalmente com a contaminação causada por agrotóxicos nos alimentos e nos líquidos ingeridos.
Um desses projetos é o GlyFloat, uma espécie de filtro-boia com microrganismos programados biologicamente para degradar resíduos de glifosato, o agrotóxico mais utilizado no Brasil, com mais de 173 mil toneladas vendidas apenas em 2017.
O projeto é da Equipe de Biologia Sintética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um jovem time de 17 alunos dos cursos de Biotecnologia, Biologia, Engenharia Física e Design de Produto com média de idade entre 20 e 22 anos.
A estudante de biotecnologia Deborah Schafhauser, 22 anos, explica que a ideia do projeto surgiu quando eles perceberam a dificuldade que as estações de tratamento de água tinham para retirar o glifosato no Rio Grande do Sul. “Vimos a oportunidade de alinhar o nosso conhecimento com as ferramentas que tínhamos dentro da universidade para criar o produto”, explica.
O projeto consiste em utilizar uma bactéria isolada da espécie Escherichia coli da linha K12 – que habita naturalmente no intestino de humanos e de alguns animais. Trata-se de uma das bactérias mais utilizadas na bioengenharia e microbiologia industrial.
“Identificamos que o metabolismo dessa bactéria possui a capacidade de degradar o glifosato. Então, o objetivo do projeto é fazer com que a bactéria sinta necessidade de degradar o herbicida e assim conseguimos removê-lo da água”, explica. A bactéria é colocada dentro de um filtro. “Elas ficaram fixas no filtro, que vai ficar um rio ou estação de tratamento, como uma boia”, completa.
O projeto ainda está em fase de desenvolvimento, mas em outubro deste ano ganhará o mundo em uma das maiores competições de biologia sintética do planeta, o International Genetically Engineered Machine, a Competição Internacional de Engenharia de Sistemas Biológicos, em Boston. Para bancar a viagem aos Estados Unidos e os custos do projeto, a equipe fez uma campanha de financiamento coletivo pela internet, onde conseguiram arrecadar cerca de R$ 32 mil.
“Após a competição, continuaremos as discussões sobre o futuro do projeto. Gostaríamos de aplicar no mercado, levar as companhias de saneamento e assim tentar fazer o projeto chegar à população. Mas antes disso estamos focados em identificar os pontos a serem concluídos para entregar o melhor material”, conclui Deborah.
Espuma que absorve agrotóxicos
Outro projeto inovador vem da Universidade Federal de Minas Gerais e é liderado pela pós-doutoranda em Engenharia Metalúrgica e de Materiais Marys Braga Almeida. Consiste em utilizar poliuretano – conhecido pelo uso em espumas, como nas buchas para banho – para retirar agrotóxicos da água e de alimentos. “A ideia começou a ser executada no meu doutorado. O objetivo era criar esse material que pudesse retirar contaminantes orgânicos da água, como o pesticida, e que também fosse sustentável, podendo ser utilizado mais de uma vez”, explica.
Sua equipe conseguiu desenvolver uma espuma com reagentes de poliuretano de origem vegetal. “A metodologia consiste em imergir a espuma dentro do sistema, onde ele fica em contato com a água. Deixamos por um determinado prazo, e depois retiramos a espuma. No caso de alimentos, os colocamos dentro da água, junto da espuma”, completa a pesquisadora Marys Braga.
Após isso, os exames comprovaram a remoção dos contaminantes da água. “Com vários testes fomos aperfeiçoando o projeto. Hoje, é possível remover os herbicidas sem afetar os nutrientes dos alimentos. Conseguimos também utilizar a mesma esponja diversas vezes sem saturar o material, garantindo que ela continua a remover os resíduos”, afirma. A primeira etapa de testes foi feita com os herbicidas Atrazina e Trifluralin, utilizado em diversos plantações, como as de alho, berinjela, cebola, cenoura, couve-flor, feijão e tomate.
O projeto continua em desenvolvimento. “A pesquisa precisa avançar mais para chegar até o consumidor. Temos contato com empresas privadas e companhias de saneamento para analisar a sua viabilidade em grande escala. É um estudo que precisa avançar, mas estamos conseguindo ótimos resultados”, avalia a pesquisadora.