Chegamos ao ponto em que o WikiLeaks sustenta a teoria da conspiração conhecida como Pizzagate (segundo a qual o ex-diretor de campanha de Hillary Clinton estaria por trás de uma rede de pedofilia). Julian Assange não consegue nem mesmo escrever um tweet sobre óculos escuros sem um viés conspiracionista.

Nesse contexto, dá para entender quem pensa que o fundador do site é movido não só pelo zelo à transparência como também pelas várias contas que tem a acertar. Mas mesmo os críticos mais duros do WikiLeaks devem se opor à tentativa do Senado norte-americano de rotulá-lo como “agência de inteligência não-estatal e hostil” no projeto de lei que define o orçamento deste ano para os serviços de inteligência dos EUA.

Ron Wyden, por exemplo, não é exatamente um amigo do WikiLeaks. Em maio, o gabinete do senador de Oregon publicou no Twitter que era “um fato estabelecido” que “Trump estimulou ativamente os russos e o WikiLeaks a atacar a democracia [norte-americana]”.

Também destacou os suspeitos elogios de Trump ao WikiLeaks durante a campanha eleitoral. Assim como seus colegas democratas do Comitê de Inteligência do Senado, Wyden aderiu à linguagem dura, usada no projeto de lei, para se referir à intromissão russa.

Mas, diferentemente de seus pares, votou contra o texto por conta da seguinte frase: “O Congresso entende que o WikiLeaks e a liderança do WikiLeaks se assemelham a um serviço de inteligência não-estatal e hostil, frequentemente apoiado por agentes do Estado, e devem ser tratados como tal pelos Estados Unidos”.

Mas então, o que é exatamente um “serviço de inteligência não-estatal e hostil”? Excelente pergunta. “Serviço de inteligência” significa agência de espionagem. E agências de espionagem, por sua vez, são ferramentas do governo – ou seja, nunca são não-estatais.

É exatamente por isso que Wyden, apesar de se opor ao WikiLeaks e de estar determinado a investigar a interferência russa no processo eleitoral, saiu em defesa do site. Resoluções oficiais são perigosas quando ninguém sabe ao certo a que se aplicam. Pode até ser que a expressão seja puramente simbólica. Mas a cláusula pode ser bem mais nociva, ameaçando muitas publicações que consideramos que não têm nada a ver com interferência externa.

O jornal “The Hill” relata que Wyden se opos ao uso da “frase heterodoxa” para definir o WikiLeaks porque o termo ambíguo “pode ter consequências legais, constitucionais e políticas, principalmente se for aplicado a jornalistas que estejam investigando assuntos sigilosos”.

Wyden afirma ainda que a ideia de que “o governo dos EUA tenha um plano de ação não declarado contra ‘serviços de inteligência não-estatais e hostis’ é igualmente perturbadora”. Quando o diretor da CIA Mike Pompeo usou essa mesma expressão para descrever o WikiLeaks durante uma palestra em um think tank, em abril, as palavras já haviam soado bem obscuras.

Nada mudou quatro meses depois, a não ser a possibilidade de esse tipo de linguagem se tornar de fato uma política de governo. Isso é muito sintomático e preocupante, mesmo que você odeie o WikiLeaks.

O assessor de imprensa de Wyden, Keith Chu, afirma que, apesar de o senador “ter reiteradamente criticado o WikiLeaks pelo papel a que se prestou na última eleição, de ferramenta da Rússia”, é fácil imaginar “como esse tipo de classificação poderia vir a ser empregado contra veículos de imprensa legítimos ou contra jornalistas que tenham usado materiais publicados pelo WikiLeaks”.

Resumindo, independentemente da opinião que alguém possa ter sobre Assange e seu site, “o precedente aberto por essa nova categoria de inimigo dos EUA é perigoso”.

O governo dos Estados Unidos abomina o WikiLeaks pelo menos desde 2010, quando o grupo divulgou mais de meio milhão de documentos que revelaram segredos de décadas da diplomacia norte-americana e das guerras do Iraque e do Afeganistão. Esse desprezo oficial não é segredo para ninguém.

O site existe para antagonizar e constranger governos do mundo inteiro, mas o poder norte-americano sempre foi seu principal alvo – e a bête noire de Assange. O ódio ao fundador do WikiLeaks e o desejo de vê-lo fracassar são comuns a políticos de todo o espectro norte-americano, eleitos ou não. São sentimentos amplamente conhecidos da opinião pública – assim como a hostilidade irredutível de Assange aos Estados Unidos.

O que permanece nas sombras é uma prova clara de que o WikiLeaks seja um “serviço de inteligência não-estatal e hostil”, o que quer que isso signifique. A versão não-sigilosa do relatório da Comunidade de Inteligência dos EUA sobre a suposta interferência russa no processo eleitoral diz: “Avaliamos, com um alto grau de certeza, que a inteligência militar russa (o Departamento Central de Inteligência ou GRU) obteve material via operações cibernéticas, de maneira pública, e via veículos de mídia, de maneira reservada, e o repassou ao WikiLeaks”.

O relatório aponta que “é muito provável que Moscou tenha escolhido o WikiLeaks por conta de sua autoproclamada reputação de autenticidade”, mas não diz mais sobre a colaboração entre as duas entidades. É importante estabelecer a diferença entre endossar uma ação e fazer de fato parte dela. Se não houvesse distinção entre os dois, a redação do Breibart News, portal de notícias de extrema-direita, ficaria numa barraca no próprio Jardim Sul da Casa Branca.

Parece bem plausível que o WikiLeaks tenha em alguma medida conspirado com parte do governo russo. O hacker de pseudônimo Guccifer 2.0, considerado por analistas privados e pelo governo dos EUA como uma invenção da inteligência russa, foi transparente quanto à sua colaboração com o WikiLeaks (no verão passado, Guccifer 2.0 me disse que eles estavam prestes a repassar informações sobre o Partido Democrata para o WikiLeaks, o que de fato aconteceu pouco depois).

O alinhamento de Putin, Assange e Trump em termos de valores e objetivos também é inegável. Por essa razão, ao longo do último ano, o site angariou muitos e firmes opositores (e, para ser justo, apoiadores também). Mas nada disso descarta a possibilidade de Assange ter recebido material de hackers russos sem se preocupar com a origem, com o único objetivo de constranger e desestabilizar sua arqui-inimiga Hillary Clinton.

A partir daí, seria válido um debate público sobre se Assange está pessoalmente envolvido demais. Mas será que a simples suspeita sobre o que motiva uma publicação deveria mesmo virar lei? Assange pode até ser um picareta com um projeto bem claro e pouquíssimos escrúpulos, mas ele está longe de ser o único.

O lendário advogado Floyd Abrams, especialista em Primeira Emenda, afirmou a The Intercept que ele é “bastante crítico” do comportamento do WikiLeaks. Mas que “a questão de saber exatamente o que WikiLeaks fez, que contatos tem ou teve com adversários do país e tudo o mais” não pode se misturar à questão de uma classificação oficial por parte do governo:

A questão maior é se o governo [dos EUA] deveria classificar uma entidade como agência de inteligência não-estatal e hostil. Ainda não sei ao certo quais são as consequências pretendidas com esse tipo de classificação. Mas tenho certeza de que poderia deixar o WikiLeaks vulnerável a ameaças e talvez até à violência. Soa como se fosse uma descoberta oficial, mas não é; com um significado legal, que também não existe. Então apesar de eu não ter nenhuma objeção a oficiais de inteligência de alta patente criticarem o WikiLeaks, eu ficaria longe de falsas denominações oficiais.

Trevor Timm, diretor-executivo da Freedom of the Press Foundation, organização sem fins lucrativos que financia e apoia a liberdade de imprensa, disse a The Intercept que “Ron Wyden tem razão, a cláusula sobre o WikiLeaks é inédita, obscura e potencialmente muito perigosa”:

Não importa se você ama ou odeia o WikiLeaks. O fato de o Congresso visar uma publicação usando uma expressão tão vaga e inventada quanto “serviço de inteligência não-estatal e hostil” para potencialmente reprimir direitos previstos na Primeira Emenda, abrindo a porta para aumentar o monitoramento de fontes, deveria preocupar todos os jornalistas. É uma pena que outros membros do Congresso não consigam enxergar esse perigo tão óbvio.

(Freedom of the Press Foundation recebe recursos da empresa controladora de The Intercept.)

Para resumir, ainda que você ache que Julian Assange não passa de um sórdido, um  mentiroso, um putinista – e mesmo que de fato fosse tudo isso –, ele publica informações autênticas às quais ele não deveria ter acesso.

Por motivações políticas, sem dúvidas, mas publica. Considerar uma pessoa como essa inimiga do Estado coloca em perigo qualquer outro veículo de mídia que esteja trabalhando ou interessado em trabalhar com materiais e informações aos quais não deveria ter acesso. Em 2017, isso significa quase todos os veículos.

Do Departamento de Justiça à Casa Branca e ao Congresso, a moda é ser antivazamentos, e o uso de termos abertamente ameaçadores para definir os que publicam informações verdadeiras é sem precedentes. O WikiLeaks é o alvo perfeito para defensores de segredos de Estado porque a reputação do site está na lama fora da Trumplândia. Mas vamos pesar as consequências disso.

“Serviço de inteligência não-estatal e hostil” não significa tecnicamente nada. O que impediria um jornal como o New York Times (ou qualquer parceiro ou concorrente dele) de cair nessa definição ao fazer reportagens sobre e-mails hackeados pelo WikiLeaks?

Qual é exatamente o status legal de um “serviço de inteligência não-estatal e hostil”? Uma doação para o WikiLeaks poderia ser considerada assistência material ao inimigo?

E quanto aos muitos e respeitáveis jornalistas que já trabalharam em parceria com o WikiLeaks, do New York Times ao Der Spiegel? Eles agora serão considerados culpados de ter colaborado com um “serviço de inteligência não-estatal e hostil”?

Se o WikiLeaks vier a publicar um vazamento tão revolucionário e valioso quanto o que foi feito por Chelsea Manning, e aí? Jornalistas poderiam escrever reportagens sobre o que tiver sido obtido por essa agência espiã inimiga?

São perguntas sem respostas. A estratégia de rotular o WikiLeaks, além de arriscada, contribuirá pouco para reformar ou mudar significativamente Assange ou o próprio WikiLeaks. O mais provável é que o fundador do site veja nisso tudo mais uma prova de que ele é vítima de perseguição por parte do governo dos EUA.

A nova classificação não adiantaria muito, no entanto, para convencê-lo de que promover Marine Le Pen ou espalhar falsas teorias da conspiração sobre cozinha ritualística não são de interesse público. Mas poderia ser um balde de água fria nos que estão trabalhando para valer. Não dê a Assange, ou a Pompeo, essa vitória.

Foto em destaque: Julian Assange após conversar com a mídia da varanda da Embaixada do Equador em Londres (19/05/2017).

Tradução: Carla Camargo Fanha