Discurso de ódio – Os fantasmas da ditadura. Por Lucio Carvalho * Além de frequentemente causar um misto de estranheza, profundo desgosto e repulsa generalizada, os políticos brasileiros parecem estar credenciando-se agora também à ingrata tarefa de reabilitar fantasmas. Foi o que mais conseguiu na semana que passou – além de atrair para si momentos de um brilho obnubilado – o deputado Jair Bolsonaro, ao homenagear em plenário, na sessão que aprovou a admissão do impeachment da presidente Dilma, pessoas diretamente envolvidas no período de maior endurecimento do regime militar e suas práticas mais execráveis, como prisões arbitrárias e a tortura de adversários políticos. Ou que outros objetivos teria o deputado para revolver períodos tenebrosos da história recente a não ser o de procurar ser uma espécie de seu representante ou possível arauto? Seja como for, se forem outros, parecem ser tão obnubilados quanto a glória de invocá-los.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Porém, ao que tudo indica, seu objetivo estava mais centrado em fazer-se notar e também fazer notar o que talvez ele procurasse ali significar: uma lembrança ou um aceno de que o aspecto mais mórbido do período ditatorial pudesse estar, nem que pelo menos em sua mente e de seus simpatizantes, vivo e latente, além de fazer da sua memória um tipo muito específico de baluarte de oposição ao governo atual. Ainda que verificar o espírito altamente regressivo do momento político presente seja tarefa relativamente simples, é de pensar também em que tipo de efeito contrário o gesto poderia acarretar. Ou poderia haver algo mais apropriado e favorável para o recrudescimento ideológico dos simpatizantes do governo e daqueles que se situam à esquerda? Também é difícil categorizar, mas é bem sabido que as ideologias se fortalecem diante da presença de um opositor tão emblemático, ainda que politicamente um tanto quanto isolado. Nesse sentido, é bastante possível dizer que o reforço da mensagem do parlamentar veio atender tanto aos seus interesses particulares de visibilidade quanto, por outro lado, ao da situação e dos defensores do governo, por identificar ou pelo menos tentar colar nele um protótipo de todos os seus contendores. Talvez inadvertidamente, Bolsonaro tornou-se um panfleto perfeito, mas justamente para servir aos seus detratores, numa espécie de efeito adverso imediato. Além disso, a aridez do cenário e o acinzentamento das declarações de voto de certo modo também contribuíram espontaneamente para fornecer de bandeja ao governo federal e seus defensores um argumento encruado na memória e na cultura política brasileira: o temor do endurecimento à direita e o fantasma da ditadura militar. Um expurgo dos aspectos mais violentos do regime Com exceção dos cientistas políticos e estudiosos correlatos, o comum das pessoas não costuma sentir-se dentro do que aqueles primeiros costumam chamar de “cultura política”. Apesar disso, é bastante claro e observável que todos estejamos inseridos em uma. Às vezes, em mais de uma e, em muitos casos, muitos gostariam que em nenhuma. Esse talvez seja o caso das pessoas que, principalmente entre a parcela mais jovem da população , costumam declarar praticamente nenhum interesse no assunto, embora mesmo esse comportamento possa também fazer parte de uma cultura política em que o desinteresse encerre por si só um significante. Grosso modo, por cultura política costuma entender-se tudo que se refere ao aspecto moral e normativo de uma sociedade, incluindo-se aí seus valores e crenças predominantes. Porém, num sentido mais amplo, ela pode muito bem abarcar a simbologia e, para além das representações culturais, os modos de expressão afetiva das pessoas. Em se tratando do Brasil recente, há pelo menos três gerações de brasileiros que cresceram e viveram no período do regime militar ou sob sua influência. Ignorar o trauma político e cultural persistente é um luxo a que nenhum político pode se dar e mesmo entre aqueles que creem em algum ganho político com o espezinhamento pelo terror, é preciso considerar os efeitos adversos da ação, como parece não ter pesado ou previsto o deputado Jair Bolsonaro. Nem sempre é a memória efetivamente vivida que conta com exclusividade na formação do imaginário de uma população, mas seus artistas, suas referências e também o aspecto sentimental da cultura, pela qual ganham adesão ícones e personalidades, tanto no campo intelectual quanto cultural, do mais acadêmico e erudito ao mais popular. Trata-se de um passado ainda muito próximo e enterrado muito rente à terra. Ou mesmo mal enterrado e explicado, como as dificuldades de enquadramento e punição por crimes cometidos e investigados no período ditatorial atestam muito bem. É por isso que, ao se mencionarem tão claramente personalidades comprometidas com o período histórico da ditadura, seja muito pouco possível conter a partir daí a desaprovação pública decorrente de uma declaração tão obtusa e sinistra quanto a proferida por Bolsonaro. Não é porque toda a população tenha alguém a lamentar por efeito direto de qualquer ação policial do regime militar, mas o eco cultural daquele momento, embebido em medo e insegurança, dificilmente não voltaria a reverberar com muita força. Isso tanto porque muitas das pessoas que viveram aqueles tempos continuam vivas, quanto pela razão de que o processo de abertura e redemocratização foi penoso e demorado, levando cerca de uma década para concretizar-se a pleno, desde os fins do governo do general Ernesto Geisel, em 1979, até a década de 90, com a eleição do ex-presidente Fernando Collor. Pessoas que direta ou indiretamente viveram a política deste período e agora, com a dilatação das redes de contatos, via internet, passaram a última semana realizando uma espécie de expurgo dirigido principalmente aos aspectos mais violentos do regime. Poderia ser diferente? Dificilmente. Não se trata aqui de explorar um determinado capital político, mas um trunfo por si só altamente significativo e ainda mais num momento em que se mostra um afunilamento, ao que tudo indica irreversível, do apoio político ao governo. Sanguinolência e virulência É bem possível que o parlamentar do PSC tenha menosprezado o revés político que sua manifestação poderia causar. Seria uma aposta em sua ingenuidade, mas é igualmente improvável que