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Fernando Pessoa – Versos na tarde – 03/04/2016

O pastor amoroso Fernando Pessoa¹ I Quando eu não te tinha Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo… Agora amo a Natureza Como um monge calmo à Virgem Maria, Religiosamente, a meu modo, como dantes, Mas de outra maneira mais comovida e próxima. Vejo melhor os rios quando vou contigo Pelos campos até à beira dos rios; Sentado a teu lado reparando nas nuvens Reparo nelas melhor… Tu não me tiraste a Natureza… Tu não me mudaste a Natureza… Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim. Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, Por tu me escolheres para te ter e te amar, Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente Sobre todas as cousas. Não me arrependo do que fui outrora Porque ainda o sou. Só me arrependo de outrora te não ter amado. II Está alta no céu a lua e é primavera. Penso em ti e dentro de mim estou completo. Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira. Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz. Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos, E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores. Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos, Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores, Isso será uma alegria e uma novidade para mim. III Agora que sinto amor Tenho interesse nos perfumes. Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro. Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova. Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia. São coisas que se sabem por fora. Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça. Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver. IV Todos os dias agora acordo com alegria e pena. Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava. Tenho alegria e pena porque perco o que sonho E posso estar na realidade onde está o que sonho. Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações, Não sei o que hei-de ser comigo. Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo. Quem ama é diferente de quem é. É a mesma pessoa sem ninguém. V O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos, Porque já não posso andar só. Um pensamento visível faz-me andar mais depressa E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. Todo eu sou qualquer força que me abandona. Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio. VI Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela. Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança. Amar é pensar. E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela. Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. Tenho uma grande distracção animada. Quando desejo encontrá-la, Quase que prefiro não a encontrar, Para não ter que a deixar depois. E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo. Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só pensar ela. Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar. VII Talvez quem vê bem não sirva para sentir E não agrade por estar muito antes das maneiras. É preciso ter modos para todas as cousas, E cada cousa tem o seu modo, e o amor também. Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir. Amei, e não fui amado, o que só vi no fim, Porque não se é amado como se nasce mas como acontece. Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes, E eu continuo como era dantes, sozinho no campo. Como se tivesse estado de cabeça baixa, Penso isto, e fico de cabeça alta E o dourado do sol seca as lágrimas pequenas que não posso deixar de ter. Como o campo é grande e o amor pequeno! Olho, e esqueço, como o mundo enterra e as árvores se despem. Eu não sei falar porque estou a sentir. Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa, E a minha voz fala dela como se ela é que falasse. Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro, E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras. Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio. VIII O pastor amoroso perdeu o cajado, E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar. Ninguém lhe apareceu ou desapareceu… Nunca mais encontrou o cajado. Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. Ninguém o tinha amado, afinal. Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo: Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre, As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito. ¹ Fernando Antonio Nogueira Pessoa * Lisboa, Portugal – 13 de Junho de 1888 d.C + Lisboa, Portugal – 30 de Novembro de 1935 d.C [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Arte – Esculturas – Steampunk Tendencies

Esculturas – Steampunk¹ Tendencies ¹Steampunk é um subgênero da ficção científica, ou ficção especulativa, que ganhou fama no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Trata-se de obras ambientadas no passado, no qual os paradigmas tecnológicos modernos ocorreram mais cedo do que na História real (ou em um universo com características similares), mas foram obtidos por meio da ciência já disponível naquela época – como, por exemplo, computadores de madeira e aviões movidos a vapor. É um estilo normalmente associado ao futurista cyberpunk e, assim como este, tem uma base de fãs semelhante, mas distinta [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Dá para saber se haverá mais peixes ou plástico nos oceanos em 2050?

Um preocupante relatório, calculando que em 2050 haverá mais plástico do que peixes nos oceanos, foi divulgado recentemente pela Fundação Ellen MacArthur e o Fórum Econômico Mundial. Chamado The New Plastics Economy (“A Nova Economia do Plástico”, em tradução livre), o relatório estimou que, no ritmo atual, os mares terão, em termos de peso, mais plástico do que peixes na metade deste século. O relatório ganhou as manchetes de vários jornais, mas acabou sendo questionado e levantando a questão: como medir a quantidade de plástico e como contar os peixes? O problema é que o próprio relatório reconhece que é difícil fazer uma medição precisa nos dois casos.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] No caso dos plásticos, o estudo faz referência a um levantamento publicado em 2015 por Jenna Jambeck, professora da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos. Ela tentou fazer um censo global da poluição por plásticos e estimar o quanto disso vai parar nos oceanos. O estudo de Jambeck analisa estimativas do total de lixo em todos os países que não são totalmente cercados por terra e, a partir disso, estima o quanto deste lixo pode ser plástico, o quanto é reciclado e assim por diante. Mas para estimar o quanto deste plástico vai parar no mar, o estudo levou em conta apenas uma área – a Baía de San Francisco (EUA). “Isso não representa o resto do planeta, então você pode ver o potencial para grandes divergências neste cálculo”, criticou o professor Callum Roberts, da Universidade de York, na Grã-Bretanha. O que a Fundação Ellen MacArthur fez foi pegar a pesquisa de Jambeck, que faz previsões apenas até 2025, e projetar essas estimativas até 2050. Implícito Sendo assim, quanto plástico teremos nos oceanos em 2050? Surpreendentemente, isso não é especificado no relatório, mas este deixa implícito que haveria um total de 750 milhões de toneladas de plástico nos oceanos na metade do século. Quanto à estimativa dos peixes, o relatório não estima um número de toneladas esperadas de peixes nos mares em 2050 e não cita pesquisas sobre essas populações. No entanto, um diagrama no relatório prevê uma proporção plástico/peixes de “maior do que 1:1” em peso em 2050. Questionada pela BBC a respeito de seus números, a Fundação Ellen MacArthur enviou um documento chamado Background To Key Statistics e também uma nova versão do relatório publicada em 29 de janeiro deste ano. Os dois documentos trazem novos dados (nenhum dos autores estava disponível para entrevistas). A Fundação atualizou o número de peixes no mar em 2050 para cerca de 899 milhões de toneladas. Mas também aumentou a estimativa para a quantidade de plástico no oceano em 2050 para entre 850 milhões e 950 milhões de toneladas, ou cerca de 25% a mais do que originalmente previsto. Então, apesar de haver uma quantidade um pouco maior de plástico no mar em 2050, segundo estes números, a proporção continua sendo de um para um. No entanto, eis o problema real: contar peixes é algo complicado. Os novos cálculos da fundação são baseados em um estudo de 2008 liderado por Simon Jennings, do Centro para Meio Ambiente, Pesca e Ciência da Aquacultura do Reino Unido. A equipe dele usou imagens de satélite para medir a extensão de plantas microscópicas conhecidas como fitoplâncton em todos os oceanos do mundo. Imagem de satélite mostrando quatro tipos diferentes de fitoplâncton Pelo fato de os fitoplânctons serem tão abundantes, eles alteram a cor da superfície do oceano em grandes áreas, e essas mudanças podem ser vistas do espaço. E como quase toda a cadeia alimentar marinha é dependente do fitoplâncton, este dado por ser usado para estimar o total de toneladas de peixes vivendo nos mares. É desse trabalho que vem o número da Fundação Ellen MacArthur, de 899 milhões de toneladas de peixes. Revisão No entanto, em 2015, Simon Jennings reviu seu próprio estudo e chegou a uma conclusão muito diferente. Ele disse à BBC que agora ele acredita que o fitoplâncton pode, potencialmente, sustentar quantidades muito maiores de vida marinha do que ele pensava anteriormente. O novo estudo não diferencia entre peixes e outros predadores marinhos, mas conclui que pode haver entre 2 bilhões de toneladas e 10,4 bilhões de toneladas de criaturas marinhas nos oceanos. Lixo plástico recuperado do mar em um local de reciclagem em Valência, na Espanha “No momento não temos confiança absoluta em nossos métodos para determinar qual a proporção (desse volume) é formada de peixes. É um número muito incerto para prever”, afirmou o pesquisador. A previsão da Fundação Ellen MacArthur das previsões para plásticos também merece atenção. Jenna Jambeck, que liderou o estudo sobre poluição por plásticos citado pela fundação, disse à BBC que não estava estava confiante com o método da fundação, de projetar os números de seu trabalho de 2025 para 2050. Então: quanto de plástico há nos oceanos e quanto vai haver em 2050? Não se sabe, mas provavelmente é muito. Quanto de peixe? Também não sabemos, mas com certeza é muito. E quando um vai superar o outro? Definitivamente não se sabe. Mas todas estas questões trazem à tona um problema muito real: sabemos que o plástico, quando vai para os oceanos, pode levar séculos para se decompor, e seu volume está em constante crescimento. Leo Hornak/BBC

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Literatura desaparecida: 40 anos do Golpe Militar na Argentina

“Escribe mientras sea posible. Escribe cuando sea imposible. Ama el silencio.” — Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976. Cronica de Ricardo Domeneck ¹ Há 40 anos, ocorria o Golpe Militar na Argentina, que deixaria ainda mais mortos e desaparecidos pelo continente latino-americano. No Brasil, estávamos no décimo-segundo ano da ditadura militar – aquela que alguns no país hoje ainda insistem em tratar com nostalgia. Aquelas imagens das Mães da Praça de Maio permanecem como alguns dos atos de coragem e desobediência civil exemplares em nosso continente. Há alguns dias, descobri o trabalho do fotógrafo argentino Gustavo Germano. Em sua série “Ausencias”, com uma estratégia ético-estética simples e eficiente em seu soco na boca de nosso estômago, o fotógrafo refaz fotos de amigos e famílias dos anos 1960 e 70, deixando vago o local onde seus entes queridos desaparecidos deveriam estar, não tivessem sido sequestrados por um regime assassino. Sendo este um blog dedicado à literatura, gostaria de tomar o dia de hoje, no entanto, para chamar a atenção dos leitores a um outo projeto bastante comovente em nosso país vizinho, capitaneado pelo poeta e jurista Julián Axat, nascido em Buenos Aires naquele fatídico ano de 1976. Ele próprio filho de desaparecidos, tem se dedicado com afinco em manter viva a memória das milhares de vítimas da Junta Militar argentina. Em sua coleção “Detectives Salvajes”, que toma o título do romance de Roberto Bolaño (1953-2003), Axat vem publicando a literatura deixada por escritores que desapareceram pelas valas comuns, desertos e o oceano que banha nossa parte do mundo-cão. A ditadura tocou vários escritores do país, como o grande Juan Gelman, que passou anos em busca da neta. Em 1995, quase uma década antes de poder finalmente abraçá-la, escreveu uma carta que começava assim: “Dentro de seis meses cumplirás 19 años. Habrás nacido algún día de octubre de 1976 en un campo de concentración.” É a história de tantas famílias latino-americanas. Graças aos esforços de Julián Axat, pude descobrir dois jovens escritores que desapareceram na noite escura do continente: Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976, e Carlos Aiub, desaparecido em 1977, o ano em que nasci. Abro este pequeno texto em homenagem a todos os desaparecidos e sobreviventes do país vizinho com uma citação de Bustos. Permitam-me encerrá-lo com alguns versos de Aiub, sussurrando que sim, alguns de nós nos lembramos e, ao mesmo tempo, NUNCA MAIS. “temer el dolor como cuando siempre la forma del dolor y de la muerte empezás también a imaginarla y temés temés también tu olvido o algo así el qué pensarán de vos si te recordarán si tu nombre bautizará algo o servirá para algo temer el final que no te deje ver el final la victoria viste las cosas nuevas que buscás el nuevo sueño chiquitín continuado temer todo eso y entonces si temer la muerte que se puede venir y no la deseás y te aferrás a la vida con todo porque querés vivir simplemente para ver cuando al final la vida viva el nuevo dolor lo pensás más tarde.” (Carlos Aiub, desaparecido em 1977) ¹ Ricardo Domeneck nasceu em Bebedouro, em São Paulo, mas vive em Berlim desde 2002. Lançou os livros “Carta aos anfíbios” (Bem-Te-Vi, 2005), “a cadela sem Logos” (Cosac Naify/7Letras, 2007), “Sons: Arranjo: Garganta” (Cosac Naify/7Letras, 2009), “Cigarros na cama” (Berinjela, 2011) e “Ciclo do amante substituível” (7Letras, 2012). É coeditor das revistas Modo de Usar & Co. e Hilda. A editora Verlagshaus J. Frank, de Berlim, publicou em 2013 uma coletânea de seus poemas.

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