Na cabeça dele havia duas palavras que significavam o mesmo: Europa e segurança. No país dele, a Somália, havia uma palavra que significava “vai-te embora”: guerra. Atravessou África, chegou à Líbia, meteu-se num barco para atravessar o Mediterrâneo. Se ele teve medo de atravessar o mar que se tornou cemitério? Ele tinha medo era de ficar. Ele, Ahmed Abdalla, conta-nos na primeira pessoa o impossível. Esperança. Ahmed arriscou a vida para sobreviver. Nos momentos difíceis, agarrou-se à ideia que tinha da Europa No meio da confusão, choro de crianças e gritos, não consegui perceber imediatamente se a minha família tinha sobrevivido à bomba que nos destruíra a casa. Pela maneira como a minha mulher segurava os nossos três filhos não dava para distinguir se o mais novo, o único rapaz, na altura com seis meses, tinha sobrevivido. A princípio pareceu-me que não, mas afinal tinha. Foi sorte, tinham-se atrasado no mercado. Não sei quem enviou a bomba, nem isso é importante. Isso é normal desde que a guerra civil começou no meu país. Não fomos a primeira família nem a última fugir. Aquele cenário só nos deu uma hipótese: ir embora o mais rápido possível.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Entreguei a chave da loja que o meu pai me deixou, o nosso único sustento, na mesquita e pedi-lhes que vendessem tudo. Partimos a pé para a Etiópia. A cada passo estou mais longe de Mogadíscio e mais perto da Etiópia. Não estou mais longe de casa, porque a casa já não existe. Queremos paz, só quem não a tem, quem não vê os amigos e família a caírem com a violência da guerra, pode querer mais. A Etiópia é o primeiro pouso para chegarmos à Europa, terra segura. É por essa ideia que arriscamos a vida. Acho que, afinal, até não pedimos muito. Enquanto caminho, despeço-me do meu país, sem sentir saudades. Na minha cabeça duas palavras: Europa e segurança. Está a ser duro, mas também esperançoso. A única solução era sair dali, não importava como. É por isso que quando me perguntam se tenho medo de atravessar o Mediterrâneo, eu não percebo a pergunta. Medo? Eu tenho medo é de ficar. Não vamos à procura de uma vida melhor. Vamos à procura de vida. Atrás de nós só há morte. SEMPRE FOI ISSO QUE PEDIMOS Estamos há três meses na Etiópia, talvez o tempo mais seguro da viagem. Alugámos colchões numa casa pequenina, o equivalente a um lar. Somos ilegais. Ilegais. Não me digam que não há cidadãos ilegais porque há, é assim que fomos tratados nesta viagem. Mas nós não somos ilegais, somos gente com direitos. Com direito a viver. Sempre foi isso que pedimos. Sem plano definido, dei por mim no meio de outra terra em guerra, com mulher e três crianças pela mão. Mesmo que queira procurar alternativas à Europa não há hipótese. Por onde quer que vá, só tenho guerra e miséria à volta. Conseguimos seguir viagem com o dinheiro que a mesquita me mandou, daquilo que conseguiram vender. UM MÊS PARA ARRANJAR UM TRAFICANTE Agora estou em cima de um burro, prevê-se que a viagem seja longa. Dois meses, sem morada fixa, a parar apenas para dormir e para comer, quando era possível, até chegar ao Sudão do Sul. Novo país, nova guerra, novos perigos. E eu continuo sem nada, sem certezas, a arriscar a minha vida e a da minha família em nome da segurança. Foi preciso um mês para arranjar um traficante que nos levasse para a Líbia. Não foi difícil, o mais difícil é ficar. Por 250 dólares a cabeça, encontro quem nos leve. São 25 dias, pelo deserto. Foi preciso um mês para arranjar um traficante que nos tirasse do país, em direção à Líbia. Não foi difícil. Não é difícil sair, o mais difícil é ficar. Por 250 dólares a cabeça, encontro quem nos leve. 25 dias, pelo deserto do Sudão, numa Land Cruiser de caixa aberta. Conhecem o carro? Estão a ver o tamanho? Somos 32 naquele espaço. Sim, é possível. Trinta e dois à mercê de um traficante. Aquela viagem soa a prenúncio do que está para vir. Sem dar por isso, é verão. À medida que o calor aperta, a misericórdia do traficante diminui. Não há água e ele só a dá quando entende. E entende poucas vezes. Os 250 dólares só dão direito à Land Cruiser. A nada mais. Quando quer paramos pelo caminho para comer, para dormir. Se houver sombra melhor, senão também não importa. O NOVO TRAFICANTE Tenho Tripoli, a capital da Líbia, na mente. Agarro os meus filhos e penso na cidade. Acredito que é o começo para uma vida nova. No meio do desespero vence a esperança. Estou muito perto de morrer. Tudo o que passei até aqui parece nada. Cada dia em que sobrevivo é um dia de vitória. Familiares que já tinham passado para o lado de lá, que já estavam na Europa, enviam o que faltava para fazer os 800 dólares que o novo traficante nos pede para a travessia do mar. Quanto mais perto estamos da Europa, mais aumenta o valor da vida. Uns estrangeiros, a mando do coyote, explicam-nos como funciona. Alguém nos vem buscar, para nos levar a um campo perto da costa. De lá esperamos pela oportunidade. Pode demorar meses. Somos ilegais, escondidos, para ninguém perceber que aqui estamos. Mesmo que toda a gente saiba o que se passa, convém disfarçar. Da ansiedade à expectativa vai uma pequena distância. Sei que o trajeto será feito de noite. Por isso, assim que o sol se põe cresce na minha mente a probabilidade de sair dali. Ao fim de 15 dias, é hora. Fico nervoso. Lembro-me das histórias dos que não sobreviveram, é como se estivessem à minha frente. Está quase. Perdi a casa, o emprego, só quero salvar os meus filhos. É noite escura. Subo para o barco, dou o dinheiro ao traficante, é a primeira vez que o vejo. Ele conta as