Na primeira fila da passeata, o presidente da Fiesp, embrulhado numa bandeira brasileira, e sindicalistas de todos os matizes. Cena inimaginável há alguns anos. Mais surpreendente ainda é tantas manifestações estarem ocorrendo em tantas cidades do mundo, ao mesmo tempo: Nova York e mais dezenas de cidades americanas, Roma, Berlim, Atenas. E se procurarmos um pouco mais, encontraremos algumas dezenas de cidades menores. Cada uma protesta contra ou reivindica coisas diferentes. No Chile são os custos do ensino, no Brasil é a corrupção, nos EUA, os bancos, na Europa, os governos. Analistas tentam encontrar alguma unidade nos movimentos mundo afora. Pelas primeiras impressões, o traço de união são as redes sociais. Mas essa é só parte da verdade. Os protestos não estão ocorrendo por causa das redes sociais, apenas sua simultaneidade pode ser-lhes atribuída. As redes são só o instrumento que torna possível que tanta gente, em tantos lugares diferentes e distantes, se manifeste ao mesmo tempo. [ad#Retangulo – Anuncios – Esquerda]Estamos tendo um 1968 ou o equivalente da queda da Bolsa de Nova York em 1929, só que em tempo real. Em 1968 os protestos se espalharam pelo mundo, mas a velocidade das notícias era muito menor. Na quebra da bolsa em 1929 não só as notícias circulavam mais lentamente, como a própria compreensão das causas do fenômeno demorava muito mais a ocorrer. Agora, apesar das mudanças, da rapidez das comunicações, o fator comum a todas as manifestações é que todos viram a largura das escadas da ascensão socioeconômica estreitar-se subitamente, em todos os países. O mundo era feliz e risonho e não sabia. Todos seguindo o ritmo normal da vida: todos iríamos melhorar de vida. Teríamos todos mais acesso ao consumo – a grande medida de felicidade do mundo contemporâneo – e os nossos filhos estariam melhor do que nós, como, em boa medida, as gerações de hoje estão muito melhor do que as que nos antecederam. Tudo eram favas contadas. A humanidade tem boa memória para o bom. Memória tão boa que todas essas coisas viraram, por assim dizer, “naturais”. Não podia ser diferente. Há 150 anos, mais de 90% da população do mundo jamais viajou além de um raio de 10 ou 20 quilômetros do lugar onde nascera. Um jovem e uma jovem judeus se encontraram no Brasil na década de 1930. Haviam nascido em cidades alemãs que distavam menos de 50 quilômetros uma da outra e não conseguiam se entender em suas línguas nativas. Eles salvaram o seu romance no iídiche, a língua dos judeus alemães ashkenazi, que lhes permitiu se comunicarem, namorarem e virem a se casar. Quase tudo mudou. Mas quem se comunica pelo alfabeto latino vê na televisão e só tem uma ideia vaga do que dizem os cartazes dos protestos na Grécia, escritos em seu próprio alfabeto, graças à explicação dos apresentadores. A tradução ainda é necessária para saber contra o que os gregos se manifestam. Hoje essas coisas ocorrem no mundo inteiro ao mesmo tempo. Na China, mesmo com o regime fechado, já começam a pipocar as perspectivas de estreitamento da mobilidade social – e lá são quase três Brasis para entrar na sociedade de consumo. O temor da democratização é tal que o governo chinês proibiu um programa de calouros na televisão porque os telespectadores podiam “votar” em quem consideravam os melhores. O governo entrou em pânico, com receio de que isso viesse a dar ideias aos chineses de que voto era uma coisa boa e poderia ser repetido em outras esferas, inclusive na política. O caso foi contado na revista inglesa The Economist. Todos os protestos, díspares, sem nenhuma conexão aparente a não ser a existência de ferramentas eletrônicas que tornam possível a comunicação instantânea, tinham somente um eixo comum: a chance de cada um de melhorar de vida está sensivelmente diminuída em razão dos arranjos que “alguéns” fizeram na economia. Não importa se são os bancos, os governos, as autoridades educacionais, os Parlamentos ou o que seja. Criada para ser uma rede militar de comunicações descentralizada, de modo que nenhum inimigo pudesse imobilizá-la, a internet expandiu-se para onde os criadores jamais imaginaram. Temos internet para tudo e programas governamentais para torná-la acessível a todas as populações são tão rotineiros e prioritários quanto as políticas de vacinação o foram para acabar com epidemias. Ninguém previa, entretanto, que ela viria a ser o traço de união de tantos descontentamentos díspares em línguas diferentes, espalhados pelo mundo. Pelo visto, não há nada a fazer. No primeiro semestre deste ano, as potências ocidentais foram rápidas ao batizar, simpaticamente, os protestos no Norte da África e no Oriente Médio de “primavera árabe”, uma expressão gentil e esperançosa. Mas isso foi rapidamente convertido, na Inglaterra, numa mera coordenação de baderneiros perigosos. Quando chegamos ao outono (do Hemisfério Norte), que está presenciando simultaneamente todos esses protestos, ainda não existe nome, nem simpático nem antipático. O Fundo Monetário Internacional (FMI) corre para dizer que fica o dito pelo não dito e as políticas de austeridade, com as quais tanto se incomodaram os países da América Latina nos anos 80 e 90 do século passado, não valem mais. O que era chamado de imprimir dinheiro para fazer inflação virou respeitavelmente QE (quantitative easing, política de expansão monetária), que nada mais é do que imprimir dinheiro do nada. No fim das contas, é apenas mais do mesmo, só que agora não mais maldito. Por quanto tempo os governos poderão dormir sossegados com um barulho destes, levando em conta que só houve algumas coisas básicas que não mudaram: a economia continua a ser a ciência da escassez e os desejos humanos seguem ilimitados? ¹ Alexandre Barros, cientista político (PH.D., University of Chicago), é sócio da Early Warning Consultoria (Brasília) – O Estado de S.Paulo