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Cecília Meireles – Versos na tarde

Recordação Cecília Meireles ¹ Agora, o cheiro áspero das flores leva-me os olhos por dentro de suas pétalas. Eram assim teus cabelos; tuas pestanas eram assim, finas e curvas. As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo, tinham a mesma exalação de água secreta, de talos molhados, de pólen, de sepulcro e de ressurreição. E as borboletas sem voz dançavam assim veludosamente. Restituiu-te na minha memória, por dentro das flores! Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix, tua boca de malmequer orvalhado, e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios, com suas estrelas e cruzes, e muitas coisas tão estranhamente escritas nas suas nervuras nítidas de folha – e incompreensíveis, incompreensíveis. ¹ Cecília Benevides de Carvalho Meireles * Rio de Janeiro, Brasil – 7 de Novembro de 1901 d.C + Rio de Janeiro, Brasil – 9 de Novembro de 1964 d.C [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Acabou a era da abundância de água

O jornalista americano Charles Fishman lança The Big Thirst, um novo livro sobre a água. Sua obra anterior, The Wal-Mart Effect, foi eleito o “livro do ano” pela The Economist em 2006 e um dos finalistas do prêmio Financial Times para o melhor livro de economia. Ele aborda o tema da água nesta entrevista. O sr. diz que não teremos mais água que tenha ao mesmo tempo três qualidades: ilimitada, barata e segura. Por que não? Fomos mimados. No mundo desenvolvido foram construídos, há cem anos, os sistemas de abastecimento mais bem projetados e realizados. Funcionaram tão bem que fizeram das nossas cidades centros urbanos viáveis, criativos, saudáveis e vibrantes do ponto de vista econômico. Esses sistemas se tornaram tão perfeitos que permaneceram – até hoje – invisíveis. Quando abrimos a torneira, pressupomos que a água esteja ali, pronta, e que a rede de abastecimento enterrada no solo esteja funcionando. Ambos os pressupostos estão ultrapassados. O crescimento populacional, o desenvolvimento econômico e as mudanças climáticas sobrecarregam o fornecimento. Portanto, teremos de nos despedir do consumo despreocupado e ingressar numa era de utilização racional da água. Por que regamos as plantas ou damos descarga nos banheiros com água tratada e potável? Sua posição sobre os inconvenientes do emprego da água potável me lembram da questão do estacionamento. Achamos que o estacionamento gratuito é ótimo, mas ele causa problemas – como esperar para encontrar uma vaga e trânsito pesado. De que maneira o sr. tentaria convencer alguém de que a água gratuita é na realidade uma coisa ruim?[ad#Retangulo – Anuncios – Direita] A água não é de graça. As pessoas dirão: “Eu pago a conta d”água, US$ 30 por mês, não tem nada de graça!” Bem, é quase. Meio litro de água engarrafada custa US$ 0,99. A conta média da água de uma família, nos EUA é de US$ 34. Portanto, temos água em casa todos os dias para tudo, do banho ao preparo de alimentos, por US$ 1 por dia. A água de graça – tão barata que nunca paramos para pensar no seu custo – é um desastre. Quando alguma coisa é de graça, o conceito é de que ela é ilimitada. A água gratuita leva a desperdício. Produtores rurais e gerentes de fábricas e hotéis nunca se preocupam com a quantidade de água que usam e com seu uso inteligente. Água barata significa também que as empresas das quais dependemos para o seu fornecimento nunca têm dinheiro para se modernizar ou encontrar reservas. Se fosse possível mudar alguma coisa para resolver o problema da água – uma melhor gestão do meio ambiente ou o fornecimento a quem não tem -, seria o preço. Nós podemos pagar um pouco mais com o nosso notável sistema. Mas teremos problemas se deixarmos que ele se torne obsoleto. Suponho que cobrar mais pela água não resolveria os problemas do mundo em desenvolvimento. Aumentar o acesso à água potável não exigiria uma outra mudança? O fundamental na questão do custo da água é o seguinte: as pessoas pagarão pelo fornecimento de água segura, acessível e que as liberte da escravidão de terem de caminhar ou de fazer fila para consegui-la. Visitei um bairro de Nova Délhi chamado Rangpuri Pahadi. Seus 3,5 mil habitantes vivem com US$ 100 por mês. Estavam tão desanimados por ter de ficar na fila horas a fio todos os dias que criaram sua própria rede em miniatura. Fizeram uma campanha para angariar contribuições – um gasto enorme para pessoas cuja renda diária é US$ 3 -, perfuraram poços e instalaram canos que saem de um tanque de armazenamento até a choupana de cada família. Os que querem água pagam por ela cerca de um dia de salário por mês. A água fornecida pela empresa recém-criada é melhor que a da rede pública e está disponível na hora certa. Eles pagam o equivalente aos US$ 150 por mês que uma família americana pagaria. O dinheiro não é a única solução – o custo da guerra no Iraque seria suficiente para criar redes de abastecimento para todas as pessoas da Terra. O problema real é humano: ajudar as pessoas a dispor de um sistema confiável é mais difícil do que parece. O problema não está na tecnologia ou nos recursos, mas na vontade política e no conhecimento da cultura. No nosso país, alguma comunidade descobriu como usar a água de modo mais econômico?Os produtores agrícolas usam 15% a menos de água que há 30 anos e plantam 70% a mais. A produtividade da água dobrou desde 1980. As usinas hidrelétricas usam menos água que há 30 anos e geram mais eletricidade. Visitei uma fábrica de semicondutores da IBM que, em dez anos, reduziu em 29% o uso da água ao mesmo tempo que aumentou a produção em 33%. Orange County, na Flórida, há 25 anos tornou obrigatório o emprego da água de reúso nas novas construções. Hoje, a quantidade de água de reúso bombeada diariamente é quase igual à de água potável. O condado dobrou de tamanho, mas não precisou dobrar a quantidade de água potável. Charles Fishman, jornalista e escritor/O Estado de S.Paulo/NYT TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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O direito à renda como afirmação da justiça distributiva

Sofri e ainda sofro discriminação pela cor da minha pele, por ter vindo da periferia, por usar cabelo rastafári e contas de candomblé, por ser mulher e nordestina. Mas foi aos nove anos de idade que senti a dor que a falta de uma renda digna pode causar a alguém. Sou neta de escravo, filha de motorneiro de bonde e lavadeira. Como meus pais não tinham dinheiro para comprar um determinado material escolar, meu professor de artes disse que o lugar de uma negra como eu era na cozinha de uma branca fazendo feijoada e não na escola. Esse episódio marcou a minha vida para sempre. Tornei-me procuradora e depois juíza muito por conta dele. Pensando nas crianças, nas mães, nos pais de família que não têm renda suficiente para suprir suas necessidades básicas, dediquei minha vida à democratização do acesso à Justiça, lutando para que os periféricos pudessem ter seus direitos respeitados. Na última década, devido à fomentação de políticas sociais, avançamos muito, contudo, a falta de uma renda digna no âmbito de muitas famílias ainda intimida os mais carentes a acionarem a Justiça. Muitos, por exemplo, têm vergonha de entrar num tribunal por não terem educação ou roupas adequadas. Na ânsia de encontrar saídas para superar as mazelas decorrentes dos modelos escravocratas e de cunho elitista, uni minha luta a de outra pessoa que há décadas vem batalhando pela promoção da cidadania – o senador Eduardo Matarazzo Suplicy. Em carta datada de 1º de maio de 2011, peço à presidenta Dilma Rousseff a aplicação imediata da Lei da Renda Básica de Cidadania. O apelo feito diretamente à presidenta se dá pelo fato de que sete anos depois de sancionada, a Lei 10.835/2004 ainda não foi concretizada. A Bíblia, o Alcorão, a Mitologia dos Orixás e tantas outras bibliografias religiosas ou não, ensinam-nos a importância da partilha para a edificação de uma nação justa e próspera. A única forma de erradicar a miséria e a pobreza é dividir parte das riquezas produzidas por um país entre seus filhos-cidadãos.[ad#Retangulo – Anuncios – Direita] Tanto no âmbito político-econômico quanto no social-cultural temos as condições necessárias para cruzar a ponte que nos leva de um programa social à institucionalização do direito à renda. O bolsa família vem combatendo a fome, no entanto, há pessoas que, em função de dificuldades diversas, ainda não têm conseguido receber o benefício. A Lei 10.835 eliminaria qualquer burocracia, vergonha e dependência, além de aprofundar e ampliar o cenário das transformações sociais. A travessia dessa ponte é extremamente possível, pois a lei diz que a Renda Básica será instituída por etapas, começando pelos mais necessitados até que se torne universal e incondicional. Ela é capaz de unir um país tanto no desejo de erradicar a pobreza quanto no direito de receber uma renda. Ao promover a autoconfiança de um povo que por mais de quinhentos anos viveu excluído do seu próprio país e integrar um território continental como o nosso, resgatando dívidas culturais e históricas, a Renda Básica de Cidadania tem o poder de evitar que crianças e adultos sintam ou continuem a sentir a dor que eu sofri pela falta de uma renda digna. Não há melhor maneira de promover os ideais de justiça, igualdade e liberdade e a semeadura da cidadania do que permitir que o povo, sem qualquer distinção, tenha direito à renda. ¹ Luislinda Valois, 69, é juíza do TJ-BA. Considerada a primeira magistrada negra da história do Brasil, proferiu a primeira sentença contra o racismo e criou diversos projetos de inclusão a partir do acesso à Justiça. blog do Noblat

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