As armas e o bullying matam no Brasil. São as duas explicações da tragédia de Realengo na imprensa americana. Um texto com vírgulas mal empregadas mata mais de mil e duzentos americanos por mês nos Estados Unidos. Juízes conservadores, em geral republicanos, interpretam a segunda emenda da Constituição, com sua estranha pontuação, como um direito de todo cidadão comprar e ter armas em casa. Juízes liberais, em geral democratas, fazem interpretações diferentes e votam contra porte e venda de armas. Os assassinatos de Bob Kennedy e Martin Luther King em 68 provocaram aprovação de algumas destas leis. Antes de ir adiante, aqui está o texto da Segunda Emenda e uma tradução: “A well regulated Militia, being necessary to the security of a free State, the right of the people to keep and bear Arms, shall not be infringed”. Tradução: “Uma milícia bem regulamentada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de ter e portar armas, não deve ser infringido”. Os redatores da Constituição e das emendas sabiam ler e escrever. Entre eles havia alguns jecas, mas lá estava a fina flor intelectual das colônias, gente fluente em latim e línguas vivas. Como aprovaram um texto tão ambíguo? E hoje, quem justifica os malucos radicais como “Milícia bem regulamentada?” Bill Clinton conseguiu aprovar duas leis em 1994, uma que limitava a venda de certos tipos de rifles automáticos usados em combates pelos militares, e um sistema nacional para verificar o currículo do comprador de armas. Os lobistas das armas reagiram com dólares, engrossaram o calibre e mobilizaram suas milícias a favor de George W. Bush contra Al Gore, suspeito de ser contra venda e porte de armas. Ganharam a batalha. Os juízes nomeados pelo presidente Bush corresponderam às expectativas dos armamentistas e deram a eles duas vitórias massacrantes. Nem os estados nem as cidades podem criar leis limitando portes de armas. Ano passado, o massacre em Tucson, no Arizona, que deixou seis mortos e 14 feridos, entre eles uma deputada federal, levantou esperança de um controle de armas. O assassino tinha sido rejeitado pelo Exército e pela faculdade por instabilidade mental, tinha tendências violentas testemunhadas por vizinhos e professores nas escolas, mas entrou numa loja e comprou armas e munição à vontade. Não há neste momento qualquer coragem política em Washington para reduzir venda ou porte de armas. Em alguns estados a tendência é pró-caubói. No Arizona, onde você pode andar com arma à mostra em quase todos os lugares, inclusive bares, os lobistas querem liberar armas nas faculdades. Uma pessoa com arma em casa tem quatro vezes mais chances de morrer com um tiro do que numa casa desarmada, mas o calibre deste argumento é impotente diante dos lobistas em Washington. Bullying é a outra outra explicação para a matanca em Realengo. Não temos nem uma boa tradução em português para bullying, e até o começo do século 18, no mundo inglês, a palavra significava o oposto. Bully era o amigo bravo e protetor. A partir do fim do século 18 a palavra deu uma guinada, de amigo para agressor covarde. No século 20 e, mais recentemente, com a internet, virou caso de polícia. Dezenas de cidades e estados americanos têm leis contra bullies nas escolas e na internet, provocados por suicídios e violências de adolescentes. Pela imprensa liberal americana, o assassino de Realengo, vítima de bullies, tornou-se o pior dos bullies. Quando eu tinha 6 anos entrei no pré-primário do Instituto de Educação de Belo Horizonte, uma escola de classe média. Na hora do recreio tínhamos gangues às porradas no refeitório. De vez em quando alguem sangrava, mas era um pavor encontrar, sozinho, um bully no corredor ou na saída da escola. Na minha pacata e burguesa vizinhança no bairro de São Lucas, na década de 50, nós, adolescentes, tínhamos gangues e alguns andavam com cabo de aço, corrente e soco inglês no bolso. Minha turma era mais mauricinha. A do querido amigo e cartunista Henfil, em Santa Efigênia, bairro vizinho, era da pesada, mas a que assustava mesmo era a da favela do Pau Comeu, um pouco mais distante. Quando descia o morro e o pau comia, o Nozinho corria em casa e voltava com uma espingarda calibre 22. No primeiro tiro os inimigos disparavam morro acima. Hoje o bravo e maluco Nozinho cairia todo furado. Minhas histórias e experiências com bullies e gangues de infância e adolescência não levam a qualquer conclusão, mas desconfio que as leis não vão resolver o problema. As vozes dos alunos, pais e professores podem falar mais alto. Lucas Mendes De Nova York para a BBC Brasil