Um novo escândalo no Senado Editorial do O Estado de São Paulo A democracia representativa está em crise no mundo inteiro. A nova sociedade da comunicação não apenas estimulou o surgimento e a expansão de forças sociais, como as ONGs, mas também as incentivou a concorrer com as instituições parlamentares na tomada de decisões de interesse comum. No bojo dessa competição, grupos econômicos, setores radicais da mídia e radicais corporativistas investem contra figuras públicas que encarnam o Congresso. Atribuindo-lhes a responsabilidade por comportamentos impróprios que não tiveram, cometem a injustiça de responsabilizá-las por uma crise que, precisamente por isso, não é delas, mas da instituição legislativa que dirigem. A injustiça se torna extrema quando os injustiçados estão na política há 60 anos, durante os quais construíram uma biografia marcada pela coragem de romper com um regime autoritário e pela correção de uma vida austera, de família bem composta. Foi assim, nesse tom, praticamente com essas palavras, que o senador José Sarney tentou explicar em discurso de meia hora a origem das denúncias que não cessam de recair sobre o Senado desde que ele assumiu o seu comando, há quatro meses – tudo para se inocentar pessoalmente de qualquer participação nos escândalos que derrubaram a níveis sem precedentes a imagem da Casa. A incursão pretensiosa pela ciência política, a invocação esfarrapada da teoria conspiratória e a evocação grandiloquente do que seriam os melhores momentos da sua carreira de parlamentar mais antigo do País foram os recursos retóricos a que apelou no intento de convencer os brasileiros de que é um desrespeito visá-lo apenas porque, em surdina, empregou uma penca de parentes e agregados na Casa. (Esqueceu-se de mencionar o caso do “auxílio-moradia”.) Ou, incomparavelmente mais importante do que isso, porque, no primeiro de seus três mandatos como presidente do Senado, ele nomeou diretor-geral o notório Agaciel Maia. Nos 14 anos em que ocupou o cargo, do qual se demitiu em março, quando se revelou que ocultara da Justiça ser dono de uma mansão de R$ 5 milhões, Agaciel foi o capo de uma organização subterrânea de produção de ilícitos em escala industrial, com a proliferação de privilégios e mordomias de toda ordem, o inchaço da estrutura burocrática e a manipulação irrefreada de verbas milionárias. Quando ele enfim se foi, Sarney agradeceu-lhe os “relevantes serviços que prestou”. Salvo futuras descobertas, a apoteose da imoralidade na era Agaciel foram os atos administrativos secretos, como os que beneficiaram o clã Sarney, estimados em cerca de 500. No seu discurso, o senador afirmou textualmente: “Eu não sei o que é ato secreto.” “Ninguém pode alegar que não sabia”, sustenta Agaciel. Nesse lodaçal, o novo escândalo é o pronunciamento de Sarney. Com uma desfaçatez chocante até para quem já se habituou a esperar tudo dos políticos que representam o que a atividade tem de mais condenável, ele quer que se acredite que não tinha o menor conhecimento, que dirá conivência, dos abusos que se cometeram sistematicamente nos últimos 15 anos na Casa, onde ninguém o supera em influência. “Eu não vim para administrar, para saber, da despensa do Senado, o que havia lá”, disse, lavando as mãos. Ele quer que se acredite também que tomou por iniciativa própria – e não relutantemente, sob pressão da opinião pública – as medidas reparadoras de que se vangloria na atual gestão. E ele quer que se acredite, ao fim e ao cabo, que a sua biografia – na versão hagiológica do seu discurso – o torna inimputável: quem foi o que ele diz ter sido jamais poderia ter algo que ver com os fatos que enxovalham o Senado; por isso qualquer crítica que se lhe faça é uma ofensa, um ato de lesa-majestade. Sarney só teve razão quando disse, com endereço certo, que “todos nós somos responsáveis”. A prova está nas acoelhadas reações dos seus pares à farsa que encenou. “Não se pode medir a justeza de uma vida pública em um detalhe ou outro”, agachou-se, por exemplo, o líder do DEM, José Agripino Maia. Até os senadores Pedro Simon e Jarbas Vasconcelos, tidos como defensores intransigentes da moral e dos bons costumes políticos, estão assistindo a essa vergonheira em obsequioso silêncio. O Senado está à altura de seu presidente.