Ronilso Pacheco, da Comunidade Batista de São Gonçalo, afirma que política e religião sempre se misturam, mas que é “melhor fazer opção que contribua para os direitos humanos”.
Bolsonaro e Edir Macedo, fundador da Igreja Universal e aliado do presidente
As igrejas evangélicas poderosas, que dispõem de presença na mídia e influência política , são hoje parceiras de um projeto “ultraconservador” do governo Jair Bolsonaro, que nega direitos e explora a fé dos mais pobres. Os “barões da fé”, porém, não representam a totalidade do público evangélico, e parte desses fiéis adota no seu cotidiano práticas de acolhimento e respeito das diferenças, na opinião do teólogo Ronilso Pacheco.
Nascido em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, Pacheco é pastor auxiliar da Comunidade Batista na sua cidade e ativista de direitos humanos. Autor do livro Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão, é hoje pesquisador da Fundação Ford e está terminando o mestrado em teologia na Universidade Columbia, em Nova York.
Em entrevista à DW Brasil, Pacheco afirma que o vínculo entre igrejas evangélicas e a atuação política conservadora no país data da sua fundação, no século 19, por americanos brancos e racistas que perderam a Guerra da Secessão, migraram ao Brasil em missão evangelizadora e se aproximaram das elites locais. O vínculo com o poder fortaleceu-se na ditadura, consolidou-se na democracia e atingiu maior radicalismo sob Bolsonaro.
“Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo interreligioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres”, afirma Pacheco. Segundo ele, a atuação desses setores da igreja só é possível “traindo” a história de Jesus Cristo registrada na Bíblia, como alguém resistente à hierarquia do poder e movido pela missão de “destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres”.
Pacheco identifica uma novidade na relação entre o que chama de igreja evangélica hegemônica e o poder sob a gestão Bolsonaro. Além dos tradicionais parlamentares da bancada evangélica, que buscam prestígio e espaço para as suas igrejas, houve a chegada de líderes religiosos interessados em fazer uma “guerra cultural” para influenciar a construção da identidade da sociedade brasileira.
São representantes desse movimento no governo o ministro da Educação, Milton Ribeiro, pastor presbiteriano calvinista, o ministro da Justiça, André Mendonça, pastor presbiteriano, e a ministra Damares Alves, “uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos”, diz Pacheco. “Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora”.
Ele afirma, porém, que há na comunidade evangélica muitos exemplos de igrejas e pessoas que, por mais que não se identifiquem com a agenda de partidos de esquerda, adotam práticas progressistas no seu dia a dia. Para Pacheco, um “esforço metodológico e pedagógico” e uma abordagem “afetiva” poderia aproximar mais os evangélicos de agendas como direitos LGBT, liberalização de drogas e legalização do aborto.
“Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade”, diz.
DW Brasil: Qual é o papel da religião na esfera pública?
Ronilso Pacheco: No contexto da América Latina e do Brasil, tem um papel fundamental para a formação da identidade da sociedade e da tradição popular. A religião serve como uma espécie de pano de fundo e orientadora de decisões, e pode ser determinante para legitimar ou deslegitimar uma determinada política.
Isso não se choca com a laicidade do Estado?
Não, pois laicidade do Estado não é a neutralização da presença da religião, mas a harmonia e o diálogo entre diferentes expressões religiosas. O que fere a laicidade do Estado é a perspectiva de superioridade de uma determinada religião em detrimento da outra, o que tem sido um pouco a nossa tradição.
Religião e política devem se misturar?
A ideia da separação entre religião e política tem muita influência da perspectiva iluminista, da idade da razão, europeia, onde essas distinções são bem marcadas. Mas não faz sentido, por exemplo, se levarmos em consideração a sociedade indígena, que tem uma forma de viver a política indissociável da perspectiva transcendental. Também é impossível separar o que é a vida política da perspectiva religiosa em algumas sociedades do continente africano.
Mesmo em contextos em que se prega um distanciamento entre a religião e a política, a perspectiva religiosa já se impregnou de maneira decisiva na política. A religião é um pano de fundo da perspectiva constitucional e da organização da sociedade. E também da perspectiva de luta e resistência, de pensar em alternativas. Nos assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ou do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) há uma religiosidade forte, com ênfase na mística.
O movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos é indissociável de grandes lideranças das igrejas, principalmente das igrejas negras. Na América Latina não é diferente, se você pensar nos conflitos no Peru ou na Colômbia, e o papel que as igrejas têm de acolher e organizar a comunidade.
Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade, do que tentar fazer com que isso seja dissociável.
Ronilso Pacheco é pastor auxiliar da Comunidade Batista de São Gonçalo, pesquisador e ativista de direitos humanos
Você mencionou o MST e o MTST, que são movimentos de esquerda. Ao mesmo tempo, há movimentos e partidos de direita e extrema-direita vinculados a igrejas. A Bíblia abrange essas duas perspectivas ou é questão de interpretação?
Não é uma questão de interpretação, é uma questão de escolha das histórias que você quer dar ênfase. A Bíblia contém diversas narrativas sobre como Deus interage com as pessoas, ou como os povos interagem com Deus. Ambas [as perspectivas políticas] se expressam na Bíblia, ali há o contexto do mundo real, marcado por pessoas solidárias mas também por déspotas, marcado por traidores e gente muito violenta, mas também por gente disposta a lutar por justiça.
Se você escolhe dar ênfase às histórias do Novo Testamento, às histórias de Jesus, não há crises de interpretação. Ao contrário, você é confrontado em como as opções de algumas lideranças [religiosas] são traidoras da memória de Jesus que está nos Evangelhos.
Não é passível de interpretação que Jesus foi acolhedor, alimentando a multidão e estimulando a partilha. Não é a questão de interpretação como Jesus foi resistente à ideia de superioridade, de uma hierarquia de poder. No Evangelho de Lucas, Jesus fala que veio para libertar os cativos, para acolher os pobres. Não é passível de interpretação a fala de Maria, quando está grávida de Jesus e diz como que ele seria, de maneira bem expressa: ele virá para destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres. A única maneira de burlar isso não é interpretação, é você trair essa memória.
Agora, você pode voltar ao Antigo Testamento e escolher, por exemplo, quando o povo de Israel invadiu um determinado território e assassinou seus habitantes para tomar conta dele. Você pode escolher usar isso para legitimar uma pretensão de poder. Mas as histórias em que Jesus está envolvido não são passíveis de interpretação, e são diferentes de qualquer perspectiva de superioridade e dominação.
Por que a igreja evangélica é hoje predominantemente identificada com a direita?
Eu diria que é a igreja hegemônica [evangélica]. Eles têm tanto poder comunicacional, um império de mídia, que tomam conta da noção sobre o que é a identidade e a estratégia evangélica. Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo interreligioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres.
Esse grupo acabou se tornando um rosto do que seria a igreja evangélica no Brasil, mas a igreja evangélica é muito maior e mais complexa que isso. Ela está presente de maneira cotidiana nas periferias das cidades. E, sem se olhar no espelho e dizer “sou progressista”, sua prática diária está mais direcionada a agendas progressistas, no sentido do acolhimento, da solidariedade social, do respeito à diversidade, porque está numa periferia com uma complexidade de pertencimentos.
Não que não existam igrejas e lideranças ultraconservadoras a fundamentalista nas periferias. Mas não diria que isso é a igreja evangélica no Brasil, pois seria desonesto com muitos esforços no território nacional, desde nas comunidades evangélicas do sertão a igrejas importantes nos grandes centros urbanos, que fazem um caminho completamente diferente, inclusive pagando um alto preço por isso.
Como se deu a aliança entre a igreja evangélica hegemônica e a direita? Há paralelos com o que ocorreu nos Estados Unidos?
Os paralelos são muitos. A presença evangélica no Brasil tem uma herança do universo evangélico conservador dos Estados Unidos. A formação da nossa igreja evangélica se dá com uma imigração significativa de evangélicos cristãos do sul dos Estados Unidos, que perdem a Guerra de Secessão [1861-1865] e vão fazer missões no Brasil. Eles têm um projeto de evangelismo, conquistar territórios, povos, converter almas, abrir novas igrejas. E é um um projeto profundamente conservador, inclinado à escravidão como parte da economia. É uma igreja que cresce associada à perspectiva elitista e de poder. Claro que há fissuras, mas há essa influência.
No início do século 20, sobretudo com a ampliação do campo pentecostal, mais ligado à Assembleia de Deus, eles constroem uma relação com governadores, presidentes, e isso se intensifica durante a ditadura militar. Há um apoio forte à ditadura de algumas igrejas, como as convenções da Assembleia de Deus. Essa parceria atravessa a ditadura e entra na redemocratização. O [deputado] Mateus Iansen, da Assembleia de Deus, foi o autor da emenda que permitia a prorrogação do mandato de José Sarney de quatro para cinco anos. Em seguida, foi beneficiado com uma concessão de rádio. Tudo isso para dizer que estamos falando de uma longa jornada, não é algo do governo Bolsonaro.
O que há de novo na aproximação de parte da igreja evangélica com a extrema direita de Trump e Bolsonaro?
Nos Estados Unidos, há uma convicção do nacionalismo cristão de que ele deve pautar a identidade nacional. Há um mito, sobretudo entre os evangélicos brancos do sul dos Estados Unidos, que eles foram um vencedor moral da Guerra de Secessão, pois têm os valores mais nobres, respeitam os valores cristãos, têm amor à Bíblia e à família. A extrema direita nos Estados Unidos foi construída a partir desse nicho.
No Brasil, se for apontar algo novo, é a maneira como o grupo neocalvinista e calvinista conservador conseguiu fazer parte desse governo [Bolsonaro] de uma maneira significativa, dando outro tom para a atuação da extrema direita. Se já tínhamos a forma mais tradicional dessa influência com a bancada evangélica, com políticos que vêm de longas décadas e têm o objetivo de manter seu poder e influência, o grupo neocalvinista e calvinista conservador traz outro elemento, conectado com o que acontece nos Estados Unidos: assumir uma guerra cultural. Mais do que ter poder e recursos para sua igreja, é como influenciar na construção da identidade da sociedade brasileira. Então a disputa está na educação, na cultura.
Por isso, mais do que tomar conta do Legislativo, o importante é fazer as disputas certas nesses lugares e estar na área da educação, na área da cultura, na Suprema Corte, para construir uma identidade cultural que marque a supremacia cristã conservadora. O governo Bolsonaro deu espaço a essa investida, surgiu a oportunidade de não ter vergonha de assumir que a disputa é por uma supremacia cristã. Há a volta do discurso da cristofobia e um presidente que verbaliza isso, inclusive na ONU.
Há postos-chave do governo ocupados por nomes que se orientam por essa lógica. Você tem um pastor presbiteriano calvinista no Ministério da Educação [Milton Ribeiro], um pastor presbiteriano no Ministério da Justiça [André Mendonça], um católico ultraconservador no Ministério das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] e uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos [Damares Alves], fazendo a disputa do que é direitos humanos e do que não é direitos humanos. Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora, indiferente ao debate da tolerância e do diálogo interreligioso.
Qual é a representatividade da visão progressista hoje na igreja evangélica?
É um número muito significativo, mas conceituo o evangélico progressista de maneira mais aberta. Se você perguntar se ele é progressista, ele provavelmente vai dizer que não, ou que não sabe o que é isso. Me oriento mais pela prática e pela ética de movimentos e grupos de pessoas do que propriamente um compromisso com uma agenda.
Há muitas comunidades importantes em várias localidades, sobretudo nas periferias. Como por exemplo a Igreja Batista do Pinheiro, que fica em Maceió e foi expulsa da Convenção Batista Brasileira porque passou a aceitar casais homoafetivos na sua congregação e dar a eles o direito de participar da liturgia do culto. Há evangélicos fazendo isso sem alarde, que são acolhedores com o povo LGBTQI+. Há comunidades que têm relação de amizade com lideranças religiosas de outras tradições, como de matriz africana, à revelia dos ataques diários sofridos por muitos terreiros. Essa rede de solidariedade está além dos debates, por exemplo, sobre o aborto. Quando a realidade do aborto chegar, a comunidade vai pensar no que fazer. Ela não está dentro de um debate de legalizar ou não legalizar o aborto.
E como avalia a relação atual entre os partidos políticos de esquerda e centro-esquerda com o público evangélico?
Esse grupo ainda está meio perdido. As derrotas têm sido sucessivas, e há impossibilidade de comunicar e construir alternativas desde o fim da era Lula. No primeiro mandato Lula, houve uma participação mais expressiva de evangélicos progressistas.
Também tem um pouco de uma mentalidade iluminista da esquerda, no sentido de ser dona da razão, de saber propor e apontar os caminhos, de decidir o que é melhor na disputa pelos direitos humanos. Ou de empurrar determinadas agendas que são difíceis de entender, se você não gastar tempo em como tornar aquilo acessível e mostrar que é importante para a sociedade.
O campo progressista de esquerda está com muito receio desse diálogo, há muito pisar em ovos, mas está aberto a aprender que caminhos podem ser construídos.
O campo progressista tem chance de ampliar seu apoio entre os evangélicos se continuar defendendo pautas como direitos da comunidade LGBT e liberalização das drogas e do aborto, ou teria que reduzir o apoio a esses temas?
Não tem como como reduzir o apoio, porque essa é a identidade progressista, são agendas das quais não se pode abrir mão. É muito mais como pensar em como fazer isso ser compreendido e importante no dia a dia.
Alguns lidam com isso na realidade do dia a dia, como em relação à liberação das drogas. Há pessoas que perderam o filho, vizinhos, parentes, amigos. Mas não é imaginar que você vai fazer uma cartilha sobre a liberação das drogas com uma linguagem voltada para o público evangélico e isso vai resolver o problema de comunicação. Precisa estar vinculada à construção de uma relação afetiva.
O campo fundamentalista conservador tem uma aproximação em uma linguagem mais afetiva, e o campo progressista tem uma linguagem mais estética. E, às vezes, a estética não comunica. Precisa de um esforço metodológico e pedagógico de se aproximar e aderir às diversas camadas da comunidade e de fazer com que uma agenda seja compreendida. A mesma coisa com relação à questão do aborto e à questão LGBT.
Por Andrew Latham
O desenvolvimento da teoria do absolutismo papal analisando os pontos de vista de Henricus de Segusio, ou Hostiensis, como ele ficou conhecido depois de ter sido criado o cardeal bispo de Ostia em 1262.
Hostiensis desenvolveu o conceito de plenitudo potestatis mais completamente do que qualquer um de seus predecessores canonistas. Por meio de comentários sobre Quanto Personam , de Innocent III , e sobre decretais inocentes subsequentes, como Cum ex illo, Inter corporalia, Proposuit, Magnae devotionis e Cum ad monasterium (nos quais Innocent aplicou os conceitos principais primeiro articulados em Quanto Personam a diferentes casos jurídicos) ele introduziu uma série de inovações conceituais que trouxeram as sementes plantadas por Inocente à plena floração.
Basicamente, Hostiensis refinou e ampliou a idéia de vicarius Christi – vigário de Cristo. Os decretistas e os primeiros decretalistas não haviam aproveitado muito essa idéia, concentrando suas atenções na ideia de pro ratione voluntas. Mas, nas mãos de Hositiensis, a idéia de que o papa compartilhasse e exercesse a autoridade divina de Cristo tornou-se a pedra angular de um absolutismo papal mais irrestrito do que o próprio Tancredo de Bolonha havia adotado. Seu argumento era simples, mesmo que tipicamente expresso em linguagem extravagante. Toda autoridade política é derivada de Deus; portanto, todos que exercem essa autoridade podem governar por mandato divino. Mas a autoridade do papa, ele argumentou, era qualitativamente diferente da de outros príncipes. Ecoando a linguagem usada por Inocente e baseando-se em muitos dos mesmos textos que Laurêncio, Hostiensis argumentou que o papa não governava por mandato divino; ao contrário, ele governou como um agente divino. Como vigário de Cristo, ele agiu no lugar de Cristo. Portanto, ele concluiu em seu glossário sobre Quanto Personamsempre que o papa age de desejo , ele exerce a autoridade divina de Cristo e, portanto, seus atos são ipso facto lícitos. O único fator que limitava o exercício papal dessa autoridade divina era o pecado: dado que Cristo estava sem pecado, argumentou Hostiensis, o papa simplesmente não poderia estar agindo no lugar de Cristo se estivesse agindo pecaminosamente.
Com esse entendimento de vicarius Christi , Hostiensis passou a desenvolver conceitos jurídicos precisos para substituir as formulações um tanto confusas de Innocent. Talvez o mais importante seja que, onde Innocent havia escrito vagamente sobre plenitudo potestatis papal , e onde os decretistas haviam tentado concretizar o pensamento de Innocent de maneiras retoricamente expansivas, mas conceitualmente imprecisas, Hostiensis decidiu enumerar os poderes legais específicos inerentes à plenitude de poder do papa. Uma maneira de fazer isso foi tentar analisar a vaga frase “acima da lei” ( supra ius ou supra omnia iura ) que tinha sido cada vez mais utilizada pelos canonistas desde o Decreto de Inocência de Proposta de Inocência.. Segundo Hostiensis, o papa poderia agir supra ius de duas maneiras. Por um lado, sob a doutrina do que ele (seguindo Inocente) chamava suppletio defectuum , o papa poderia corrigir qualquer deficiência de fato, lei ou procedimento legal. Como Watt colocou, o suppletio era um ato de poder absoluto para remediar defeitos que surgiram pela não observância da lei existente ou porque a lei existente era inadequada para atender às circunstâncias particulares. ‘ Por outro lado, Hostiensis argumentou que o poder de agir supra implicava a autoridade de dispensar a lei. Mais uma vez citando Watt, a dispensação “era um uso do poder absoluto para anular a lei existente”. Para ter certeza, Hostiensis acreditava que o papa exigia uma causa ou razão válida para agirsupra ius . Mas ele também acreditava que, em última análise, era o próprio papa quem tinha o poder de determinar se tal causa ou razão existia em um determinado caso.
Hostiensis também procurou refinar o conceito de plenitudo potestatis , trazendo maior precisão ao conceito um tanto confuso de Innocent de “poder divino” papal. Ele o fez baseando-se nas obras de teólogos do início do século XIII, como Godfrey de Poitiers, Guilherme de Auxerre e Alexandre de Hales, os quais haviam distinguido entre duas facetas do poder divino de Deus: Seu poder absoluto ( potestas absoluta ) e Seu poder ordinário. poder ( potestas ordinata ). Segundo esses teólogos, potestas absoluta se referia ao poder abstrato ou teórico de Deus para fazer o que quisesse, enquanto potestas ordinatareferia-se ao poder limitado ou ordenado que ele realmente escolheu exercer. Aplicando esses conceitos teológicos à idéia de autoridade papal introduzida por Inocente em Quanto Personam , Hostiensis argumentou que o papa também exercia dois tipos de poder. Aqui, no entanto, ele alterou dramaticamente o significado da distinção introduzida pelos teólogos. Onde eles entenderam essa distinção como referindo-se à diferença entre “o que Deus poderia ter feito além das coisas que ele escolheu fazer”, Hostiensis entendeu o poder absoluto do papa ou potestas absoluta como uma forma de poder divino. Na sua opinião, o poder ordinário do papa ou potestas ordinata era seu poder humano de agir dentro e com base na lei, enquanto suas potestas absolutaera seu poder divino de transcender a lei – isto é, seu poder de agir além das leis que definiam e limitavam suas potestas ordinata .
Reunindo essas duas linhas de pensamento, Hostiensis elaborou ainda mais sua idéia de potestas absoluta em seus comentários sobre outros dois decretais papais, o Ex publico de Alexandre III (que trata da lei do casamento) e Cum ad monasterium de Innocent III (que trata de votos solenes). No primeiro deles, Hostiensis argumentou que o papa poderia “permitir que um cônjuge se separasse de um parceiro relutante, exercendo seu poder absoluto”. No segundo, ele defendeu que o papa poderia usar suas potestas absolutadispensar da regra monástica, mas apenas com justa causa. Tomados em conjunto, esses comentários revelam que Hostiensis passou a acreditar que, embora o papa não pudesse promulgar a lei divina e estivesse de fato sujeito a ela, ele poderia dispensá-la em certos assuntos estritamente prescritos. Esse era um novo elemento das potestas absolutas papais .
Os decretistas decretistas de Hostiensis e até os descristalistas argumentaram que o papa poderia, em certas circunstâncias, suplementar ou dispensar a lei positiva, mas ninguém chegou ao ponto de afirmar que o papa poderia dispensar a lei superior. Mas Hostiensis agora alegava que, como vigário de Cristo, o papa também poderia exercer a autoridade de Deus para anular a lei natural e divina no que se refere ao casamento e aos votos. Nos comentários subsequentes sobre o decretal Sicut unire de Celestine III (lidando com o poder do papa de unir visões episcopais), Hostiensis foi ainda mais longe, argumentando que o poder de dispensar a lei divina não estava limitado ao casamento e aos votos, mas também poderia ser usado para regular o status ecclesiaeem si. Ao fazê-lo, rompeu com seus antecessores, que argumentavam que o papa estava vinculado à constituição fundamental da Igreja e não podia alterar nem abolir o status ecclesiae .
Se a causa não está presente ou não é suficiente, não é apropriado que o papa se desvie da lei.
E, como outros juristas da época, Hostiensis também acreditava que, embora não seja obrigado pela lei, o papa deveria, no entanto, se sujeitar a ela, exceto em raras ocasiões.
Uma genealogia completa da idéia medieval tardia / moderna de soberania implicaria traçar a evolução de todos os seus conceitos constituintes ( iurisdictio; legibus solutus; plenitudo potestatis; potesta absoluta; potesta absoluta; pro ratione voluntas; persona ficta ; e dominium ) em vários locais distintos de teorização política (direito canônico; direito romano; várias literaturas polêmicas; e obras de teólogos e filósofos) ao longo de vários séculos (1075-1576). Também implicaria traçar a evolução da crença generalizada de que o coração da suprema autoridade para comandar, legislar e julgar estava adequadamente investido em reinos e outros principados que não reconheciam superioridade nesses mesmos locais e no mesmo espaço de séculos.
Finalmente, implicaria traçar a evolução da idéia de que a fonte da autoridade política suprema algum tipo de síntese do “povo” e de Deus. Neste breve ensaio, no entanto, meu objetivo era um pouco menos ambicioso: demonstrar a plausibilidade de tal genealogia, rastreando a evolução de três conceitos-chave de soberania ( plenitudo potestatis; potesta absoluta ; e pro ratione voluntas ) em um local específico de teorização (direito canônico) durante um século específico (o décimo terceiro). O argumento que desenvolvi foi que, em Quanto Personam, decretais relacionados e seus glos, Innocent e os canonistas fizeram uma série de contribuições importantes para a idéia de autoridade suprema – idéias que acabariam sendo captadas pelos primeiros pensadores modernos como Jean Bodin e trabalhadas em suas teorias de soberania. O papa estabeleceu que o ofício papal era o único locus de autoridade suprema dentro da Igreja e que, como vigário de Cristo, somente o papa exercia o que ele chamava de “poder divino” na terra.
Andrew Latham é professor de ciência política no Macalester College em Saint Paul, Minnesota. Ele é o autor, mais recentemente, de A idéia de soberania na virada do século XIV . Você pode visitar o site de Andrew em www.aalatham.com ou seguir Andrew no Twitter @aalatham