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Thiago de Melo – Poesia – 16/12/23

Boa noite A fruta aberta Thiago de Melo ¹ Agora sei quem sou. Sou pouco, mas sei muito, porque sei o poder imenso que morava comigo, mas adormecido como um peixe grande no fundo escuro e silencioso do rio e que hoje é como uma árvore plantada bem alta no meio da minha vida. Agora sei as coisas como são. Sei porque a água escorre meiga e porque acalanto é o seu ruído na noite estrelada que se deita no chão da nova casa. Agora sei as coisas poderosas que valem dentro de um homem. Aprendi contigo, amada. Aprendi com a tua beleza, com a macia beleza de tuas mãos, teus longos dedos de pétalas de prata, a ternura oceânica do teu olhar, verde de todas as cores e sem nenhum horizonte; com a tua pele fresca e enluarada, a tua infância permanente, tua sabedoria fabulária brilhando distraída no teu rosto. Grandes coisas simples aprendi contigo, com o teu parentesco com os mitos mais terrestres, com as espigas douradas no vento, com as chuvas de verão e com as linhas da minha mão. Contigo aprendi que o amor reparte mas sobretudo acrescenta, e a cada instante mais aprendo com o teu jeito de andar pela cidade como se caminhasses de mãos dadas com o ar, com o teu gosto de erva molhada, com a luz dos teus dentes, tuas delicadezas secretas, a alegria do teu amor maravilhado, e com a tua voz radiosa que sai da tua boca inesperada como um arco-íris partindo ao meio e unindo os extremos da vida, e mostrando a verdade como uma fruta aberta.

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Murilo Mendes – Poesia – 07/12/23

Boa noite O fósforo Murilo Mendes ¹ Acendendo um fósforo acendeu Prometeu, o futuro, a liquidação dos falsos deuses, o trabalho do homem. O fósforo: tão radioso quanto secreto. Furioso, deli- cado. Encolhe-se no seu casulo marrom; mas quando chamado e provocado, polêmico estoura, esclarecendo tudo. O século é polêmico. O gás não funciona hoje. Temos greve dos gasistas. A Itália tornou-se a Grevelândia. Mas preferimos essa semi-anarquia à “ordem” fascista. O fósforo, hoje em férias, espera paciente no seu casulo o dia de amanhã desprovido de greves. O dia racional, o dia do entendimento universal, o dia do mundo sem classes, o dia de Prometeu totalizado. O fósforo é o portador mais antigo da tradição viva. Eu sou pela tradição viva, capaz de acompanhar a correnteza da modernidade. Que riquezas poderosas extraio dela! Subscrevo a grande palavra de Jaures: “De l’autel des ancêtres on doit garder non les cendres mais le feu.” ¹ Murilo Monteiro Mendes * Juiz de Fora, MG – 13 de maio de 1901 + Lisboa, Portugal – 13 de agosto de 1975 Poeta brasileiro, expoente do modernismo brasileiro.

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Quintino Cunha – Poesia – 02/12/23

Boa noite Encontro das Águas Quintino Cunha¹ Vê bem, Maria aqui se cruzam: este É o Rio Negro, aquele é o Solimões. Vê bem como este contra aquele investe, como as saudades com as recordações. Vê como se separam duas águas, Que se querem reunir, mas visualmente; É um coração que quer reunir as mágoas De um passado, às venturas de um presente. É um simulacro só, que as águas donas D’esta região não seguem o curso adverso, Todas convergem para o Amazonas, O real rei dos rios do Universo; Para o velho Amazonas, Soberano Que, no solo brasílio, tem o Paço; Para o Amazonas, que nasceu humano, Porque afinal é filho de um abraço! Olha esta água, que é negra como tinta. Posta nas mãos, é alva que faz gosto; Dá por visto o nanquim com que se pinta, Nos olhos, a paisagem de um desgosto. Aquela outra parece amarelaça, Muito, no entanto é também limpa, engana: É direito a virtude quando passa Pela flexível porta da choupana. Que profundeza extraordinária, imensa, Que profundeza, mais que desconforme! Este navio é uma estrela, suspensa Neste céu d’água, brutalmente enorme. Se estes dois rios fôssemos, Maria, Todas as vezes que nos encontramos, Que Amazonas de amor não sairia De mim, de ti, de nós que nos amamos!… ¹José Quintino Cunha * Itapajé, CE. – 24 Julho 1875 + Fortaleza,CE. – 01 Junho 1943

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Ledo Ivo – Poesia – 22/11/23

Boa noite Soneto Puro Lêdo Ivo¹ Fique o amor onde está; seu movimento nas equações marítimas se inspira para que, feito o mar, não se retire das verdes áreas de seu vão lamento. Seja o amor como a vaga ao vago intento de ser colhida em mãos; nela se mire e, fiel ao seu fulcro, não admire as enganosas rotações do vento. Como o centro de tudo, não se afaste da razão de si mesmo, e se contente em luzir para o lume que o ensolara. Seja o amor como o tempo — não se gaste e, se gasto, renasça, noite clara que acolhe a treva, e é clara novamente ¹Lêdo Ivo * Maceió, AL – 18 de Fevereiro de 1924 + Sevilha, Espanha – 23 de dezembro de 2012

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Adélia Prado – Poesia – 01/06/23

Boa noite Dolores Adélia Prado Hoje me deu tristeza, sofri três tipos de medo acrescido do fato irreversível: não sou mais jovem. Discuti política, feminismo, a pertinência da reforma penal, mas ao fim dos assuntos tirava do bolso meu caquinho de espelho e enchia os olhos de lágrimas: não sou mais jovem. As ciências não me deram socorro, não tenho por definitivo consolo o respeito dos moços. Fui no Livro Sagrado buscar perdão pra minha carne soberba e lá estava escrito: “Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter uma descendência…” Se alguém me fixasse, insisti ainda, num quadro, numa poesia… e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos… Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, das que jamais verão seu nome impresso e no entanto sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas não recusam casamento, antes acham sexo agradável, condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo e varrer a casa de manhã. Uma tal esperança imploro a Deus.

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