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A fome em São Paulo; Assombrados pela desnutrição

Comer e viver assombrado pela subnutrição: a fome em São Paulo Mural do artista Paulo Ito em uma rua de São Paulo. ANDRE PENNER AP Idas e vindas de Doria sobre alimento processado joga luz sobre questão na cidade. Especialistas explicam que famílias de baixa renda e moradores em situação de rua convivem com insegurança alimentar, agravada pela crise. Faz seis meses que Ricardo, 33 anos, e Liliane da Silva, 28, decidiram se unir a outras famílias em uma ocupação de um antigo edifício da rua Vitorino Carmilo, no centro de São Paulo. As contas não fechavam. Ela faz bicos de costura e recebe 240 reais do Bolsa Família. Ele trabalha numa padaria — de maneira informal — e recebe 2.000 reais por mês. Mas com o aluguel de 1.000 em um quarto e sala e a pensão de 300 para a ex-mulher de Ricardo, pouco sobrava para sustentar quatro crianças entre um e oito anos. “O aluguel e o gás a gente pagava em dia, mas faltava comida. Às vezes tinha que cortar feijão, carne, tomate…”, conta ele, que há um ano e meio perdeu o emprego em outra padaria — onde ganhava ainda menos, uns 1600 reais — e ficou sem trabalho durante seis meses. Naquela época passaram a comprar só arroz e batata — “o mais barato” — e a depender da ajuda de família e doações de cesta básica. E ainda hoje dependem de que seus quatro filhos tomem café da manhã e almocem nas creches e escola municipais que frequentam diariamente. As dificuldades enfrentadas pela família de Ricardo e Liliane refletem a realidade de milhares de famílias da capital paulista — e do Brasil — que, ainda que se alimentem, vivem assombradas pela fome. Uma realidade que se atenuou nos anos de bonança econômica, o que fez com que o Brasil deixasse o Mapa da Fome da ONU em 2014. Mas que nunca sumiu. “A fome em São Paulo é a insegurança alimentar. Ou seja, aquela pessoa que não tem o que comer em quantidade e qualidade adequada para o seu bom desenvolvimento. Mas isso é fome. É diferente daquela pessoa extremamente desnutrida quase morrendo. Mas uma pessoa que não tem capacidade de se desenvolver é tão sério quanto”, explica a nutricionista Isabel Marçal, gerente da ONG Banco de Alimentos, que recolhe mensalmente cerca de 50 toneladas de comida que ainda está própria para o consumo, mas que não será comercializada, e distribui a entidades como creches e asilos, combatendo o desperdício. “No primeiro caso, quando alguém está quase morrendo, você tem que tomar uma medida emergencial. Já a fome em São Paulo é a fome que incapacita da mesma maneira, mas nem sempre é visível a olho nu”, acrescenta. O debate sobre a fome na capital voltou com força nas últimas semanas, após o prefeito João Doria (PSDB) lançar o programa Alimento Para Todos e prometer distribuir um granulado feito de farinata, uma espécie de farinha composta por alimentos próximos de sua data de validade ou que não seguem os padrões de comercialização. Chegou a anunciar que o produto, que foi batizado pelos críticos do prefeito de “ração humana”, chegaria como complemento alimentar nas refeições dos centros de acolhida de pessoas em situação de rua e, já em outubro, nas merendas de crianças da rede municipal de ensino — o que pegou de surpresa da própria secretaria de Educação e contrariou as regras municipais e federais que regulam a alimentação escolar, segundo noticiou a Folha de S. Paulo. “A alimentação nas escolas paulistanas é reconhecida internacionalmente pela sua qualidade. Se continuar a ser fomentada, com orgânicos e a retirada de produtos industrializados, ela é muito boa. Será que realmente é necessário entrar com o complemento?”, questiona Vivian Zollar, conselheira do Conselho Regional de Nutrição, um dos organismos que criticou a decisão do prefeito. A rejeição foi tanta, e não apenas por parte de especialistas e nutricionistas, que mães com filhos matriculados no ensino público chegaram a se manifestar na avenida Paulista na última quinta-feira. Doria acabou recuando, segundo ele mesmo admitiu nesta quarta-feira para jornalistas. A posição de sua gestão, ele garante, é a de “aguardar”, para não transformar o tema em “uma polêmica interminável”. “Há sempre um cuidado muito grande na área de educação e assistência social. Estamos avaliando com cuidado, mas não haverá nenhuma decisão para que a farinata seja distribuída neste momento”, afirmou. Assegurou, entretanto, que “o produto é bom”. Em coletiva de imprensa, Doria anuncia que a farinata estaria presente na merenda de crianças da rede pública. HELLOISA BALLARINI AFP Flávia Rondão, 38 anos, ficou assustada com a possibilidade de que seu filho Vitor Hugo, de um ano e quatro meses, começasse a comer a farinata na creche, onde fica de 7h30 até 17h30. Ainda mais porque ele nasceu prematuro e possui uma série de restrições alimentares. “A alimentação dele na creche é super controlada, então para mim é uma tranquilidade. Eu economizo com ele estando lá e isso para mim é importante. Quando ele chega eu só faço a janta, ou então ele come um mingau, um miojo, uma bolacha ou toma um leite… E deita e dorme”, conta. Mãe e filho vivem um pequeno quarto no mesmo edifício ocupado do centro, na Vitorino Carmilo, porque pagar as contas ficou impossível. Flávia ganha um salário de 1.200 reais por mês em uma fábrica de produtos para pet shop e viu o aluguel subir de 900 para 1.700 reais no final do ano passado. Ainda que dividisse os gastos com sua madrinha, conta ter passado dificuldades durante uns cinco meses, antes de finalmente decidir ir para a ocupação com as outras famílias. “Já cheguei a não ter o leite do meu filho, cheguei a não ter comida para comer. A gente apertou de um jeito, apertou de outro, porque não queríamos sair de lá. Cortei muita coisa”, explica. Zollar, do Conselho Regional de Nutricionista, explica que uma situação comum nas famílias é a de “fome oculta”. “São indivíduos que até estão com peso adequado ou com excesso de peso, mas por conta da qualidade ruim do que come, acaba tendo carência específica de alguns nutrientes”,

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